A câmera é capaz de mentir mesmo mostrando aquilo que pretende esconder? Essa é a questão central do documentário Netflix “Jimmy Savile: A British Horror Story” (2022) sobre o escândalo que explodiu após a morte do icônico DJ, apresentador de TV e filantropo inglês – um rastro de mais de 500 vítimas de abusos e estupros, principalmente de menores de reformatórios, hospitais e instituições psiquiátricas. Jimmy Savile foi por 60 anos uma celebridade do showbiz, admirado por Margaret Thatcher, amigo da família real e com uma multidão de fãs. Boatos de assédios e abusos o acompanharam, mas Savile espertamente os alimentava na mídia, diante das câmeras, para depois ser tudo abafado pela sua credibilidade que os milhões que arrecadava para a caridade construíram. Será que Savile hipnotizou toda uma nação com seu jeito excêntrico e lunático? Assim como Dr. Caligari, no clássico do cinema alemão? O caso Savile revela esse ardil do vilão do filme que teria prenunciado o zeitgeist do nazifascismo.
O sociólogo alemão Siegfried Kracauer defendia que o cinema expressionista, mais precisamente o filme O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene (1920), era uma antevisão do nazifascismo que teria a Alemanha como o epicentro. A história do psiquiatra disfarçado de mestre de cerimônias de espetáculos em feiras (Caligari) que usava uma criatura hipnotizada (Cesare) para cometer assassinatos, era uma alegoria do zeitgeist em gestação na Europa e que se consolidaria nos regimes totalitários que empurrariam o continente para a Segunda Guerra Mundial.
A questão é que o fim da Segunda Guerra Mundial com a derrota de Hitler não extinguiria este zeitgeist. Caligari e Hitler estavam mortos, mas a técnica de criar sonâmbulos através da hipnose ainda estava incólume. E, o que é pior, ampliada pelas ondas concêntricas dos meios de comunicação de massa, cuja estreia foi justamente a propaganda política nazi através do rádio e cinema.
A TV e a sociedade do espetáculo através das imagens deram um alcance ainda maior a esse ardil. Porém, com uma grande diferença. Se no passado o Dr. Caligari contava com a dissimulação das sombras e da noite para ocultar os crimes de Cesare, na sociedade das imagens as sombras deram lugar ao excesso de visibilidade, ao showbiz em que até os bastidores fazem parte do espetáculo de metalinguagem. E até assassinos seriais buscam a notoriedade midiática.
Como então é possível ocultar crimes sugerindo-os e, às vezes, até tornando-os visíveis para as câmeras? Paradoxalmente, as câmeras são capazes de mentir, mesmo mostrando aquilo que pretende ocultar.
Esse é o ponto central do documentário Netflix Jimmy Savile: A British Horror Story (2022), dirigido pelo cineasta inglês Rowan Decon e dividido em dois episódios, cada um com cerca de 80 minutos.
Falecido em 2011, aos 85 anos, na sua cidade natal de Leeds, Inglaterra, o icônico e excêntrico DJ, apresentador de TV e filantropo Jimmy Savile deixou um rastro de mais de 500 denúncias de abuso e estupros de menores em seus 60 anos de circo midiático no showbiz. Foi um dos DJs e apresentadores mais famosos e populares da Grã-Bretanha. Apresentou programas infantis de TV e arrecadou muito dinheiro para caridade destinado a hospitais psiquiátricos, reformatórios e hospitais infantis participando de maratonas e usando o seu status de estrela da BBC apresentando programas como o “Top of The Pops” e “Jimmy Fix It”.
Jimmy adorava a atenção de todos com o seu jeito de lunático, uma coleção de óculos que certamente fazia inveja a Elton John e com um indefectível charuto, sempre em performances frenéticas para atrair a atenção das câmeras, jornalistas e fãs. Tornou-se ícone britânico com o seu extraordinário trabalho de captação de fortunas para a caridade, chamando a atenção até da família real – tornando-se amigo íntimo do príncipe Charles, ao qual informalmente prestava consultoria de media training.
O que mais impressiona no documentário é que em todas essas décadas como celebridade, Savile fazia questão de cultivar um viés de ambiguidade (principalmente para os tabloides sensacionalistas) como se zombasse dos boatos que o seguiam.
Frequentemente ele brincava sobre as “forças das trevas” que secretamente o animavam e o trabalho de caridade como uma forma de “perdão” dos seus pecados. “Espero que lá em cima São Pedro pegue leve com os meus pecados”, dizia. E sempre que jornalistas o cobravam sobre os boatos de abusos e assédios, sempre dizia jocosamente: “o meu caso está chegando na próxima quinta-feira...”.
Em uma das maratonas em que percorria o país, um repórter perguntou se a corrida era uma forma de se punir. “Não”, respondeu. “A única vez em que você precisa se punir é quando está com jovens... porque você é o vilão por não ser gentil com elas por apertá-las e as fazer dizer ‘Ai’”.
Apesar de tudo, graças à rede de amizades e conhecimentos que conquistou (da Coroa Britânica até a primeira-ministra Margaret Thatcher, que o considerava um “grande empreendedor”), tornou-se um cidadão acima de qualquer suspeita, com um misterioso modus operandi capaz de apagar seus rastros e silenciar as vítimas.
Como o cineasta Rowan Deacon salienta, é como se toda a sua pantomima e excentricidades tivessem hipnotizado uma nação.
O Documentário
Logo no início percebemos a longevidade da carreira de Savile: acompanhamos imagens dele, como DJ, apresentando os Beatles em um show no Reino Unido.
É o início de quase três horas de um ritmo implacável de imagens de arquivo de diversas décadas, entremeadas com entrevistas atuais com pessoas que trabalharam com ele ou o conheceram, jornalistas investigativos que eventualmente desenterraram as evidências por trás dos rumores – anos e anos de rumores – e com uma de suas vítimas dos anos e anos de rastros não comprovados de vítimas na época.
O documentário se move cronologicamente através de sua carreira, desde os primeiros dias como DJ até se tornar a joia da coroa da BBC como apresentador do “Top of The Pops” e o “Jimmy Fix It”. E mesmo após a aposentadoria, como uma espécie de tesouro nacional em constantes aparições na TV até a sua morte.
Tudo isso reforçado, é claro, pelo seu trabalho constante levantando milhões de libras para caridade – o mais famoso, para o hospital Stoke Mandeville e outras instituições semelhantes.
Como celebridade filantrópica, abriu a porta para amizades com todos, desde a então primeira-ministra Margaret Thatcher, que admirava seu espírito empreendedor, até o príncipe Charles, que o via como um canal para que a família real se comunicasse com os trabalhadores. Isso, efetivamente, o tornou invencível, principalmente quando conseguiu colocar a o departamento policial de Leeds no seu bolso, ao convidar oficiais para as “festas de sexta-feira” na sua espaçosa cobertura.
Rumores de suas verdadeiras predileções sempre o acompanharam, mas nunca houve qualquer evidência, apesar de Savile, propositalmente, alimentar os tabloides com declarações ambíguas. Para depois dizer que tudo não passava de “sensacionalismo” contra uma figura notória.
O jornalista investigativo Meirion Jones acabou encontrando vítimas dispostas a testemunhar, apesar de suas vulnerabilidades. Mas sua investigação pelo jornal Newsnight sobre o estupro e abuso de inúmeras crianças e adultos, aparentemente eram abafadas para evitar o constrangimento da BBC.
A British Horror Story deixa claro para nós que as intensas ações filantrópicas era o seu principal modus operandi: em instituições como reformatórios e hospitais psiquiátricos encontrava uma fonte inesgotável de vítimas vulneráveis e incapazes de fazer qualquer denúncia.
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