SEMIÓTICA

Grande mídia cria realidade paralela econômica – Por Wilson Ferreira

Inflação, desemprego e fome estão diariamente nas manchetes da grande mídia. Mas isso não significa que, finalmente, a crise econômica está repercutindo no jornalismo corporativo. É possível ocultar a realidade, mesmo mostrando aquilo que se deseja ocultar

Escrito en OPINIÃO el

Em algum lugar esse humilde blogueiro leu a melhor descrição sobre natureza da estatística: você tem um pé em uma bacia de água escaldante e o outro pé em outra bacia, desta vez com água congelante. Estatisticamente, na média, você está passando bem.

Essa é a melhor imagem para descrever o malabarismo retórico-estatístico que o jornalismo corporativo vem praticando nesses últimos meses para tentar dar pernas a uma suposta retomada econômica pós-pandemia. Com ênfase à retomada de “números anteriores à pandemia”, como se isso quisesse representar grande coisa para o “jornalismo corporativo”. 

Faço essa conceituação genérica de jornalismo por que o jornalismo especializado, econômico, desapareceu das páginas e telas há algum tempo – na medida em que as variáveis econômicas deixaram de ser políticas monetárias, política de câmbio, contas externas, spread bancário, política industrial etc., para serem substituídas por variáveis climáticas, sanitárias, guerras, meteorológicas, eleitorais etc.

Para que, então, economistas? Basta entrevistar qualquer chefe de alguma corretora de títulos e valores mobiliários para saber se o mercado está “calmo” ou “tenso” com as variáveis aleatórias listadas acima. 

 É nesse exercício de malabarismo diário (afinal, todo o esforço da guerra híbrida que levou ao golpe de 2016 não pode ir por terra – os fundamentos neoliberais devem ser mantidos a todo custo) que a grande mídia acabou criando uma insólita realidade paralela que lembra a imagem dos pés estatisticamente confortáveis descritos acima.

Para que jornalismo econômico?

Para começar, acompanhe, caro leitor, os dois grupos de manchetes abaixo:

(a) “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida” (O Globo); “CNC projeta aumento na expectativa de vendas do comércio para 2022” (CNN Brasil); “Crescimento do setor de serviços no Brasil atinge maior nível em 15 anos” (R7); “Setor de serviços supera perdas da pandemia e cresce 10,9% em 2021” (R7); “Produção industrial volta a crescer em dezembro e fecha 2021 com expansão de 3,9%” (G1); “Mercado formal registra crescimento de 2,7 milhões de empregos” (IG).

(b) “Inflação se alastra e atinge 78% dos preços, e famílias ficam sem saída” (Uol); “Fome cresce e, pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não tem garantia de comida na mesa” (O Globo); “Taxa de desemprego do Brasil deve ficar entre as maiores do mundo em 2022” (O Globo); “Inflação recorde no país foi impactada pela alta nos preços dos combustíveis” (G1).

No grupo (a) temos a realidade paralela dos números macroeconômicos – números em escala regional e nacional a partir de pesquisas classistas ou de autarquias e institutos. E no grupo (b), a realidade cotidiana da microeconomia, descrevendo como a sobrevivência do dia a dia está cada vez mais difícil.

Números relativos e absolutos

 As interpretações dos números que encontramos no grupo (a) nos faz lembrar o “conforto estatístico” do infeliz personagem descrito acima, entre o escaldo e o congelamento. Um exemplo desse “conforto médio”, cujo modus operandi é habilmente confundir números relativos com absolutos, está na matéria da primeira manchete do grupo (a): “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida”

Se olharmos o gráfico abaixo, gerado na matéria a partir de dados do IBGE, percebemos o malabarismo relativo vs. absoluto que a matéria faz: na verdade, em termos absolutos, a variação percentual cai pelo terceiro mês seguido (2,3% jan; 1,3% fev; 1,0% mar). Frente à variação negativa de dezembro de 2021 (-2,6%), os números de 2022 são positivos. Em termos relativos há “crescimento” (na verdade, variações positivas). Ou seja, em termos relativos, em março diminuiu pela segunda vez a variação de crescimento. A manchete deveria ser o inverso!

Mesmo na realidade macroeconômica do grupo (b), no qual a grande mídia parece sair da realidade paralela do “conforto estatístico”, muitas manchetes tentam fazer malabarismo retórico com adjuntos adverbiais de concessão (“apesar de”, “embora”, “em que pese”, “mesmo que” etc.). “Apesar da crise, cresce a venda de ovos de Páscoa...”; “Embora o desemprego seja elevado, o setor de informática é o que mais contrata...”.

Estruturalmente, a grande mídia precisa mostrar sempre o “lado bom”. Afinal, a notícia é um produto à venda e, como qualquer mercadoria, tem que prometer uma experiência agradável ao leitor/telespectador – não importa se a notícia é boa ou ruim; no final, o noticiário tem que oferecer uma experiência agradável. Quanto mais próxima do infotenimento, melhor.

Porém, em última instância, está a urgência em evitar que todos os esforços do jornalismo de guerra (principalmente de 2013 a 2016) não tenham servido para nada. 

O mais importante é que os fundamentos neoliberais sejam agressivamente mantidos. Principalmente quando sabemos que as famílias controladoras da grande mídia brasileira vivem do rentismo – eles sabem que o esquema de negócios da mídia tradicional (trocar espaço publicitário por entretenimento) está em franca decadência.

Privatização da miséria

“Não está fácil pra ninguém”, “Está difícil pra todo mundo” são os bordões mais ouvidos por apresentadores ao tentar falar alguma coisa depois das manchetes negativas sobre inflação e desemprego. “Difícil pra quem, cara pálida!” poderíamos responder diante da alta dos juros que só beneficia o rentismo – aliás, a única justificativa para a atual política monetária do BC, sabendo-se que não existe inflação por demanda no País.

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