ADAPTAÇÕES

Orgulho e preconceito e gays em "Fire Island" – Por Cesar Castanha

“Fire Island” acrescenta algumas coisas textualmente à narrativa, como as dinâmicas racistas envolvidas nesses traquejos sociais e objetivos afetivos menos normativos

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Escrito en OPINIÃO el

Uma complicação interessante de se adaptar materiais literários antigos é observar o processo pelo qual eles se tornam “obras de época”, quando foram, um dia, narrativas contemporâneas. É interessante porque observamos a criação de um distanciamento histórico e de uma linguagem que inserem essas histórias em um gênero de que elas não faziam parte, e muito do trabalho de adaptar passa, então, a ser determinado por escolhas em torno desse movimento de como expressar essa ideia de passado em um texto que não continha essa ideia.

No conjunto das adaptações de “Orgulho e preconceito”, a minissérie da BBC de 1995 e o filme de 2005, dois dos exemplos mais icônicos das adaptações de Jane Austen, fazem escolhas relativamente opostas. Em 1995, a minissérie, dirigida por Simon Langton, faz uma adaptação que não reivindica uma diferenciação de época. Com uma decupagem padrão e o tratamento do texto no formato serializado e para a TV, ela insere poucos marcadores formais para subscrever o texto em um “naquela época” imaginado. Até mesmo o trabalho de figurino e direção de arte evitam chamar atenção para si mesmos, o que obras “de época” frequentemente se esforçam para fazer.

A versão de 2005, dirigida por Joe Wright, ao contrário, reiteradamente coloca em cena esse distanciamento. Há marcadores expressivos, formais e coreográficos de época que atravessam a direção de arte e o figurino (este particularmente rigoroso, utilizado para estabelecer narrativa e esteticamente inclusive a diferença de classe entre os personagens), como também a fotografia, trilha sonora e atuações. A relação entre essas formas do cinema e a expressão de uma ideia de passado é melhor desenvolvida na pesquisa de Daniel de Andrade Lima e particularmente em um de seus artigos a ser publicado em breve pela revista Iluminuras. A síntese disso, porém, encontro na afirmação da professora Angela Prysthon, da UFPE, que, ao descrever a cena de Elizabeth e Darcy na chuva, uma cena que ela adora, acrescenta “o filme transforma Jane Austen em um épico”.

“Orgulho e preconceito” só se torna um épico ao ser localizada formalmente como uma obra do passado por um olhar do presente. No texto, estão ausentes elementos do gênero. O que se apresenta é uma observação de costumes dirigida a uma dinâmica social muito específica, a da transmissão de propriedades e riqueza a partir das relações familiares na Inglaterra na virada do século XVIII para o XIX. Essa observação é muito irônica e também pessimista, consciente de que a única forma das mulheres que participam dessa dinâmica conseguirem se manter economicamente é por meio do casamento, o seu próprio e os de sua família. Sustentar as trocas sociais necessárias para se obter êxito nesse processo é o propósito das personagens do livro, que não são tão exatamente românticas quanto informadas pelo romantismo.

“Fire Island: orgulho e sedução”, filme dirigido por Andrew Ahn e recém-lançado na plataforma Star+, compreende muito bem os objetivos do texto de Austen quando adapta o mesmo “Orgulho e preconceito” para um contexto contemporâneo. Nele, cinco amigos viajam para “Fire Island”, um destino conhecido por receber pessoas LGBTs, e principalmente homens gays, no verão, e devem colocar em prática os manejos sociais necessários para encontrarem sexo e afeto na ilha, sem perderem sua própria autonomia e noção de identidade.

É louvável o que esse filme conquista como adaptação de Austen, ainda que muito dessa escolha funcione como uma referência cômica prolongada. “Fire Island” não é como o maravilhoso “As patricinhas de Beverly Hills” (dir. Amy Heckerling, 1995), que trata o romance “Emma” como uma inspiração livre para contar uma boa história sobre o presente; ele é diferente porque se engaja em reproduzir a estrutura da narrativa de Austen e das adaptações anteriores do texto (incluindo arcos, personagens e cenas) em uma localização completamente nova. É um filme de comédia, e grande parte da comédia está em se produzir (por parte do filme) e se reconhecer (por nossa parte) essas conexões que ele estabelece com textos anteriores. Por exemplo, um dos momentos climáticos do filme é uma referência (tanto textual quanto formal) à já mencionada cena da chuva do filme de 2005, e é uma sequência que se torna engraçada quando aciona a lembrança dessa outra, mais icônica.

Fazer esse jogo funciona muito bem para “Fire Island” e me chama atenção como um gesto enraizado em uma prática de espectatorialidade gay. No livro “How to be gay”, o autor David M. Halperin discute como espectadores gays encontravam em obras do “mainstream”, seja o cinema hollywoodiano ou os musicais da Broadway, não uma representação (porque personagens gays, principalmente protagonistas, estavam ausentes), mas a realização de uma sensibilidade estética que estava culturalmente relacionada a sua própria performance e entendimento de sexualidade e de gênero. O “camp” seria o gesto mais radical de apropriação desses objetos pela via de uma sensibilidade estética gay, distorcendo leituras mais diretas e direitas desses textos (o termo “straight”, que significa tanto “hétero” quanto “direito” e “reto”, permite a Halperin uma ambiguidade de sentido nesse caso) em favor de uma vivência mais excessiva, tanto se envolvendo emocionalmente com elas de maneira exagerada quanto por tratá-las com alguma medida de deboche – levando-as a sério demais e desprezando a seriedade com que elas se apresentam ao mesmo tempo.

Essa é parte da operação de “Fire Island” com o texto de Austen, pois mesmo que o princípio da adaptação funcione como um gracejo prolongado, o filme ainda leva muito a sério as possibilidades que o romance traz quando refletido sobre esses personagens e as suas relações. Isso resulta, enfim, em uma excelente adaptação e de muitos modos também bastante inteligente (e não só engraçada). O ponto básico em que o filme acerta para realizar isso é retirar todos os seus personagens de suas vidas comuns para as férias em “Fire Island”, criando um contexto que tanto acentua a comunidade gay estadunidense como um tipo de sociedade (com suas próprias normas de comportamento e expectativas sociais) e também possibilita desenvolver a história com personagens ociosos (como são, em geral, os personagens proprietários de Austen). Tendo todo esse cenário construído, todos os elementos da adaptação funcionam de forma muito adequada, desde o constrangimento gerado quando algumas figuras não cumprem tais expectativas até o risco de que, se os manejos sociais forem malsucedidos, algo grandioso pode ser perdido (amor, amizade e autonomia, por exemplo).

“Fire Island” acrescenta algumas coisas textualmente à narrativa, como as dinâmicas racistas envolvidas nesses traquejos sociais e objetivos afetivos menos normativos. Casamento, por exemplo, nunca se torna o propósito aqui, enquanto é o centro afetivo, histórico e econômico dos livros de Austen. E há outros momentos em que a adaptação como piada é particularmente espirituosa, como tudo o que se desdobra da perda do celular pelo protagonista no início do filme, o que o força a caminhadas oitocentistas e até à escrita de uma carta à mão. A maior contribuição de “Fire Island”, no entanto, é a maneira como ele representa e realiza um desejo de incorporação, por esses personagens, das histórias que os afetam tão imensamente. Que essa incorporação se dê muito nos termos de uma política contemporânea de identidade pode não ser muito “camp”, mas é ainda muito especial e, eu diria, exemplar.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.