VIOLÊNCIA

Por que até hoje o aborto é o tabu e o estupro é a regra? – Por Monica Benicio

Retrocessos ao aborto legal no Brasil de Bolsonaro

Passeata no Rio pela legalização do aborto.Créditos: Fernando Frazão/Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Até quando vamos aceitar sucessivas violências com vítimas de violência sexual? Por que ainda é aceitável nesta sociedade culpabilizar meninas e mulheres por serem estupradas e negar seu direito ao aborto legal? Muitas vezes obrigando-as a seguir com gestações que, além de fruto de uma violência, colocam em risco as suas próprias vidas, como no caso mais recente, em que uma menina de 11 anos está sendo impedida de acessar seu direito ao aborto legal, em Santa Catarina.

Essas perguntas parecem só terem se agravado nos últimos anos, onde as taxas de violência doméstica e sexual só aumentaram no Brasil. Para nós, que somos feministas, a preocupação aumenta na mesma proporção. Por que até hoje o aborto é o tabu e o estupro é a regra no país onde 4 meninas de até 13 anos são estupradas a cada hora? Onde pelo menos 66 mil estupros acontecem por ano, 180 somente em um dia?

Em diversos países da América Latina, enquanto o movimento de mulheres avançava nas discussões sobre a descriminalização e a legalização do aborto, o Brasil vivia sucessivos golpes ao direito ao aborto já garantido legalmente em casos de anencefalia, risco à vida materna e vítimas de violência sexual. Ainda que em casos legais, o direito ao aborto tem sido cada vez mais dificultado.

O uso da objeção de consciência por profissionais de saúde tem sido cada vez mais comum. Assim, também, vemos uma série de casos de aborto legal sendo judicializados. Enquanto isso, o governo trabalha para sistematicamente retroceder a legislação já tão limitada quanto aos direitos sexuais e reprodutivos.

A eleição do presidente de extrema direita e o fortalecimento da bancada evangélica só têm agravado esse cenário. Em junho de 2020, depois de uma nota técnica da equipe responsável pela Saúde da Mulher no Ministério da Saúde indicar as dificuldades de acesso aos serviços relativos à saúde reprodutiva durante a pandemia da Covid-19, diversas/os funcionárias/os foram exoneradas/os da instituição, incluindo uma coordenadora de área. 

A nota citava o aumento da violência doméstica e sexual, além do contexto de desigualdade social provocado pela pandemia, onde o acesso a métodos contraceptivos era fundamentalmente garantido pelo Sistema Único de Saúde. Segundo a OMS, o direito ao aborto é serviço essencial à saúde e não poderia ser interrompido durante a pandemia.

Apesar disso, ainda em abril, o Hospital Pérola Byington suspendeu o serviço de aborto legal, referência no país para atenção às mulheres vítimas de violência sexual. Passamos de 76 hospitais que realizavam o aborto legal em 2019 para apenas 42 em 2020. A pandemia foi, portanto, uma desculpa perfeita para os conservadores retirarem tímidos direitos já conquistados pelas mulheres.

Uma política constante do Ministério da Saúde é tentar desmontar o acesso ao aborto legal através de portarias, dando a entender que aborto é uma questão de polícia, não de saúde pública e dessa forma incentivar que vítimas de estupro sejam investigadas e perseguidas. Recentemente, um dos manuais oficiais do Ministério da Saúde declarava que “todo aborto é crime”, informação que contraria a atual legislação brasileira. 

Uma das figuras mais importantes para a série de retrocessos que vivemos é a própria ex-ministra da Mulher, Damares Alves. A pastora criou a Associação de Juristas Evangélicos (Anajure), organização fundamentalista para fazer lobby no Congresso, que visa moralizar o direito para restringir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como o avanço sobre os direitos LGBTs. A mesma ministra - à época - que assinou a Declaração de Genebra, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, alegando que “jamais aceitariam que o aborto seja visto como forma de planejamento familiar”. Damares sempre foi inimiga das mulheres.

Damares é, inclusive, investigada por interferir diretamente para impedir o aborto de uma menina de 10 anos no Espírito Santo, estuprada desde os 6 pelo tio, que foi submetida a diversas violências para impedir a interrupção da gravidez, incluindo a manifestação de grupos fundamentalistas no hospital e assédio direto a seus familiares.

Ela só conseguiu realizar o procedimento em Recife, devido à mobilização feminista que garantiu seu direito à vida e à infância plena. Apesar disso, a violência contínua levou a sua exposição na internet e ataques à menina e sua família por grupos fundamentalistas, tornando-a culpada pela própria violência que sofreu. Aceitam o estupro, mas não o aborto. Dois anos depois estamos mais uma vez acompanhando a violência estatal a outra menina, a qual o Estado deveria proteger.

Até quando vão perseguir meninas violentadas? O estupro é historicamente utilizado como arma de terror político e com frequência emana diretamente da política oficial. A negação do direito ao aborto é uma ferramenta patriarcal que atua para manter o controle sobre os corpos de mulheres.

É sempre importante lembrar que a legislação expressa no Código Penal, que efetivamente confere mais relevância à dignidade humana que aos costumes e à moral sexual nos crimes de violência sexual, altera-se apenas em 2009.

Ou seja, há apenas 13 anos o crime de estupro é considerado um crime contra a dignidade das mulheres. Antes, era um crime contra os costumes e a tradição. Nessa legislação terrivelmente atual se a vítima de violência sexual se casasse com seu agressor ou com outro homem, o crime simplesmente deixaria de existir.

Portanto, o caso que ocorre agora, em Santa Catarina, infelizmente, não é exceção. Uma menina de 11 anos, vítima de estupro, tem sido mantida há um mês em um abrigo longe dos pais, para impedir que acesse o aborto legal, declaração que consta no próprio despacho feito pela juíza, Joana Ribeiro Zimmer. A crueldade com que grupos fundamentalistas violentam as vítimas é um retrato do aprofundamento da misoginia em um Estado fascista.

Saber que uma mulher, que enquanto juíza, deveria ocupar um lugar de neutralidade e escuta à vítima, perguntou à criança o nome do feto, fruto de uma violência brutal, é desesperador. E, ainda, se ela não podia aguentar mais um pouquinho?

É difícil se conter diante de tamanha violência, o que mais uma criança de 11 anos, vítima de violência sexual, que teve sua integridade física e sexual violada e seu aborto legal negado em diversas esferas deveria aguentar?

Este caso é um retrato das inúmeras violências estatais a que meninas e mulheres estão submetidas ao denunciar violências e buscar seus direitos. Do quanto a violência de gênero é reproduzida em todos as esferas, privada, pública e institucional.

É o retrato de um Estado cada vez mais cristão fundamentalista, onde o princípio do direito ao nascituro está sistematicamente empurrando mulheres, meninas e pessoas que gestam a gestações forçadas, com risco de vida e frutos de violência sexual. Um princípio contraditório à política que os mesmos grupos apoiam que violam a infância e que condenam crianças pretas e faveladas antes mesmo de chegarem à fase adulta. Pois esses também são os grupos conservadores que pedem a redução da maioridade penal e que são a favor da pena de morte.

Um retrocesso absoluto que é uma resposta à força do movimento feminista latino-americano. Frente a isso, o dever da esquerda brasileira em defender os direitos sexuais e reprodutivos é ainda mais pungente! O movimento feminista tem sido protagonista no enfrentamento ao bolsonarismo, como as grandes mobilizações do “Ele Não”, e é preciso comprometimento com uma política radicalmente feminista apoiada pelos mais diversos setores da sociedade para superar o fundamentalismo cristão. 

Enquanto Bolsonaro afirma que quer uma indicação de alguém “terrivelmente cristão” ao STF, lugar onde tem sido travadas diversas batalhas pela garantia de direitos sexuais e aborto legal, devemos estar mobilizadas para uma política terrivelmente feminista em todos os espaços de poder dessa nação. É por nem uma a menos, é pela vida das mulheres, mas é principalmente por uma sociedade que não seja permissiva com o estupro, com a misoginia e com a violência.

*O artigo foi escrito antes da decisão da Justiça de Santa Catarina, que determinou, nesta terça-feira (21), que a menina volte a morar com a mãe e nesta quinta (23) ela conseguiu realizar a interrupção da gestação. 

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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