POR YURI MARTINS-FONTES, SOLANGE STRUWKA E PAULO ALVES JUNIOR

Questão nacional e a burguesia subalterna na América Latina (1)

Destacamos neste ensaio o papel e o caráter das burguesias da América Latina, analisando os principais motivos pelos quais essa classe dominante se coloca historicamente contra os processos nacionais por maior autonomia e superação da pobreza

Créditos: Cortejo de uma família brasileira do século XIX, retratada por Debret
Escrito en OPINIÃO el

Por Yuri Martins-Fontes [1], Solange Struwka [2] e Paulo Alves Junior [3]

Para enfrentar a miséria e desigualdade social que persistem como características centrais das nações latino-americanas de modo geral, é preciso compreender suas raízes históricas. Para tanto, destacamos neste ensaio o papel e o caráter das burguesias da América Latina, analisando os principais motivos pelos quais essa classe dominante se coloca historicamente contra os processos nacionais por maior autonomia e superação da pobreza dos povos desta região situada na periferia sistêmica do capitalismo.

Discussões sobre a chamada “questão nacional” foram iniciadas há mais de cem anos, mas seguem sendo fundamentais para a interpretação das particularidades históricas de nuestra América (nos termos de José Martí). Devem, por conseguinte, orientar as táticas e estratégia de lutas pela superação da exploração e da submissão a interesses externos, condição da qual ainda hoje somos reféns. Neste novo século, com a agudização da crise estrutural do capitalismo, tal cenário se agrava – o que pode ser observado em uma série de “modernos” golpes de Estado e retrocessos sociais.

Acerca da questão nacional

As primeiras décadas do século passado foram de importantes avanços na luta de classes, organização da classe trabalhadora e produção teórica – tanto em nível mundial como particularmente na América. No contexto latino-americano, por volta dos anos 1920 o impacto da Revolução Russa se faz nítido: são criados vários partidos comunistas ao longo das nações do continente. Em consequência deste impulso organizacional, a recém-criada Terceira Internacional (a Internacional Comunista) passa a considerar com mais cuidado as nações americanas, fomentando debates sobre a questão nacional em nossa América. Sob a influência dialógica da nova Internacional, no início do entreguerras ainda dirigida democraticamente por Lênin, começam a ser sistematizadas contribuições críticas para uma interpretação da realidade histórica e social de nossas nações. As análises produzidas no período questionaram dogmas positivistas e eurocêntricos, que dominavam as teses da Segunda Internacional (a Internacional Socialista, de orientação parlamentar e pacifista). Contudo, apesar destes avanços analíticos, as limitadas perspectivas socialistas da Segunda Internacional, enrijecidas pela influência do positivismo evolucionista do século XIX, logo voltariam a deter a hegemonia do movimento comunista internacional, quando da ascensão de Stálin ao poder –com a burocratização política e o materialismo mecanicista que obnubilariam a liberdade do pensamento crítico dialético.

Apesar desta regressão, grandes pensadores americanos mantiveram uma coerente defesa por uma análise efetivamente dialética da realidade de suas nascentes nações, manifestando-se contrários às concepções transplantadas artificialmente da Europa para a América. Nesse sentido, buscamos aqui promover uma reflexão acerca da questão nacional na América Latina, analisando problemas e traços fundamentais comuns à maioria dos povos americanos, em especial: a tese sócio-histórica do evolucionismo social (etapismo, ou evolução social por etapas); e sua consequente derivação política prática, o aliancismo (a aliança submissa que deveria ser feita pelos trabalhadores com parcelas pretensamente “nacionalistas” da burguesia, de acordo com a ideia de um suposto primeiro momento “democrático-burguês” da revolução, que seria prévio à etapa propriamente socialista).

Dentre as análises produzidas nesse período, os temas mais relevantes para se pensar a questão nacional são: as interpretações da formação social dos países americanos e, consequentemente, a investigação das particularidades dos processos revolucionários independentistas; o combate ao imperialismo, notadamente o estadunidense; as alianças subservientes das elites internas com as estrangeiras; a questão agrária (latifúndios, etc), como sendo um dos fatores principais da formação política, econômica e social de nossas nações.

Do sentido externo da colonização ao imperialismo

Como premissa das causas fundamentais que assentam as desigualdades produzidas nos países da América Latina, apontamos o “sentido externo” da nossa colonização –  conceito desenvolvido por Caio Prado Júnior (2000) –, processo que atrela o vetor mercantil de nossa evolução nacional à expansão do mercado mundial. Pela colonização, sujeitos a uma metrópole dominadora, fomos inseridos em um sistema de poder no qual os circuitos comerciais e financeiros seguiram a lógica da troca desigual, apoiada no preceito de se “comprar barato e vender caro”. Essa lógica – materializada à custa da espoliação das riquezas, genocídio e escravização dos povos originários americanos e africanos – foi a base da acumulação primitiva do capital (MARX, 2013), tornando-se o alicerce da formação social dos países da América.

É importante notar que a inserção dos países latino-americanos na acumulação primitiva está na base da sua formação econômica e social; ao passo que isso possibilitou uma acumulação sem precedentes aos países centrais, impediu o desenvolvimento nas colônias – ao extorquir suas riquezas remetendo-as ao exterior (CUEVA, 1983). Esse processo, mantido por mais de três séculos, configurou a herança colonial e a matriz econômica, social, cultural e política de nossas nações. Aliás, o próprio Caio Prado generaliza aos demais países do continente sua clássica assertiva do “sentido da colonização” brasileira: o Brasil como parte do negócio capitalista europeu (PRADO Jr., 2000)[4].

Tomar essa afirmação pela raiz, significa compreender a formação aqui produzida como sendo uma experiência única da colonização, que sujeita o sentido da edificação de toda nossa estrutura social aos interesses do mercado europeu (VIEIRA, 2018). A particularidade de nossa colonização possui como tríade basilar: o latifúndio; a tendência à monocultura; e o trabalho compulsório (no limite, a escravidão). Como consequência desta combinação, produziu-se a cristalização de uma sociedade segregada, que respondia às necessidades de acumulação demandadas pelas economias centrais do capitalismo.

O intragável legado colonial não foi superado pelas independências políticas – restritas e incompletas – ocorridas nos primeiros três quartos do século XIX. Tais processos independentistas truncados responderam apenas às mudanças no domínio dos países centrais, e representam um padrão oligárquico-dependente de desenvolvimento capitalista (CUEVA, 1983). De forma geral, as sociedades latino-americanas, geradas a partir dos processos de independência, continuaram tendo seu modo de produção baseado na escravização, na concentração de terras e na produção de bens primários, voltadas majoritariamente para o mercado externo.

A emancipação do estatuto colonial, além de não significar a superação de determinantes fundamentais do período anterior, manteve seu cerne e propiciou o aprofundamento de suas raízes, em especial, pela maior inserção dos países no mercado mundial, a partir dos interesses do novo domínio imperial que se impôs: o da Inglaterra. Assim, a decadência dos países ibéricos (Portugal e Espanha), primeiros usurpadores dos povos e territórios americanos, e a efetivação dos processos de independência política não significaram uma ruptura das condições de troca desigual e orientação da produção a partir das demandas externas. Pelo contrário, alguns países se integraram de forma mais ativa na manutenção da mesma lógica. Essa maior integração ao mercado mundial ocorreu a partir de dois vetores: as condições reais de cada país, e as mudanças decorrentes do avanço da industrialização nos países centrais do sistema capitalista. Dessa forma, primeiramente se inseriram Chile, Brasil e logo Argentina, que haviam desenvolvido infraestrutura econômica na fase colonial e foram capazes de produzir condições políticas estáveis (MARINI, 2017).

O final do século XIX foi marcado por significativas mudanças no centro sistêmico geopolítico: novas potências se projetam para o exterior, em especial a Alemanha e os Estados Unidos – este, com uma política particularmente centrada no continente americano. Nos países centrais ocorre também uma reorganização da produção, a partir do aumento da indústria pesada e da tecnologia. Dessa maneira, a economia passa a concentrar suas unidades produtivas, criando as condições para o surgimento dos monopólios. Essa característica é a marca principal da nova fase de desenvolvimento do capitalismo: o imperialismo.

De acordo com Lênin (1987), até a transição do século XIX para o XX, a base do sistema econômico foi a livre-concorrência e o livre-comércio, em que a concentração da produção e capital, e o surgimento de monopólios foram as principais características. A partir do surgimento dos monopólios, marca fundamental do imperialismo, o processo de acumulação capitalista produziria uma tendência cada vez maior da concentração, tanto do capital industrial, quanto do capital financeiro. O resultado dessa reorganização foram grandes monopólios sedentos por novos mercados e novas fontes de matéria-prima, que forçariam a anexação de regiões menos industrialmente desenvolvidas do planeta. Em suas palavras “o capitalismo se transformou num sistema universal de opressão colonial e de asfixia financeira da imensa maioria da população do globo por um punhado de países ‘avançados’”.

Essa nova divisão internacional do trabalho, orquestrada pelas nações imperialistas, possibilitou que detivessem altos lucros e transferissem os custos sociais e econômicos da manutenção de suas riquezas para outras nações. Dessa forma, puderam manter sua posição de domínio hegemônico, a partir da reprodução do subdesenvolvimento, da pobreza e dependência das nações por elas subjugadas, como as da América Latina. Nesse contexto, cabe caracterizar o papel assumido pelas burguesias nos países latino-americanos, mas para tal é preciso antes destacar uma característica fundamental da economia dos países periféricos, com sua economia baseada na exportação: diferentemente dos países centrais, em que a atividade econômica está subordinada à relação existente entre as taxas de mais-valia e de investimento, nos países dependentes o mecanismo econômico fundamental provém da relação exportação-importação. Assim, mesmo que a mais-valia seja obtida no interior da economia, ela se realizará no mercado externo, por meio da atividade de exportação. Ou seja, o excedente passível de ser investido sofre ação direta de fatores externos, e a mais-valia realizada na esfera do comércio mundial pertence maiormente aos capitalistas estrangeiros, restando com as burguesias locais – na economia nacional – apenas uma parte dessa mais-valia.

Estas perdas, contudo, foram compensadas pelas burguesias latino-americanas mediante o aumento do valor absoluto da mais-valia, o que significa a maior expropriação e submissão dos trabalhadores, fenômeno que Marini (2017) nomeou como “superexploração da força de trabalho”, e que constitui, nas palavras do autor, “o princípio fundamental da economia subdesenvolvida, com tudo que isto implica em matéria de baixos salários, falta de oportunidade de emprego, analfabetismo, subnutrição e repressão policial”. Em síntese, a compensação no nível da esfera de circulação é um mecanismo que opera no nível da produção interna dos países latino-americano e a superexploração do trabalhador está vinculada às forças produtivas dessas economias fundamentalmente pelo fato de que a atividade econômica mais importante está submetida à produção de bens primários (MARINI, 1990).

Essa complexa formação econômica e social, assentada no latifúndio e na tendência à monocultura, sempre contou com o apoio e os ganhos das classes dominantes, sócios minoritários locais dos capitalistas das nações poderosas. São setores burgueses que se beneficiaram com as trocas desiguais e atuaram como intermediários e representantes do capital internacional. Identificar essa dinâmica particular de dominação imposta aos países latino-americanos é fundamental para se buscar construir um real movimento de emancipação: sem a superação do capitalismo e do imperialismo, que se aproveita de bases alicerçadas na herança colonial, não há possibilidade de garantir as condições mínimas de acesso aos bens comuns e à riqueza socialmente produzida.

Foi no aprofundamento das contradições geradas pelo avanço do poder dos Estados Unidos sobre os países da América que as lutas e reflexões marxistas acerca do imperialismo e das particularidades do capitalismo latino-americano se desenvolveram. A identificação do imperialismo estadunidense como um especial inimigo dos demais povos da América já se faz evidente nas primeiras décadas do novo século. O mesmo não ocorreu, porém, em relação ao caráter deletério das “burguesias internas” outrora denominadas “burguesias nacionais”. E eis aqui uma das questões mais polêmicas nos embates teóricos das primeiras décadas do século XX, debate no qual sobressaem grandes marxistas que interpretaram de modo autêntico as questões nacionais de seus países (e mesmo da América Latina como um todo), tais como o peruano José Carlos Mariátegui, o cubano Julio Antonio Mella e o brasileiro Caio Prado Júnior, entre outros pensadores.

Vale frisar que, nessas primeiras décadas, além da citada Revolução Russa (1917) e de outros importantes avanços na organização dos trabalhadores da cidade e do campo – tais como a Reforma Universitária de Córdoba (1918), a organização sindical, a criação de novos partidos políticos e as alianças operário-camponesas –, destaca-se também o impacto da Revolução Mexicana (1910), processo que fomentou o intercâmbio político e de ideias por entre os povos de toda a América.

***

Na sequência deste artigo examinemos então, desde uma perspectiva marxista, as “burguesias internas” latino-americanas – pois que, além do imperialismo, dentre os maiores problemas de nossa América está o de que sua classe dominante nunca foi “nacional”, ou seja: nunca teve uma postura “nacionalista”, “anti-imperialista”, como pensaram especialmente no início do século XX, alguns teóricos críticos. Pelo contrário, as elites de nossos países foram sempre sócias menores das burguesias das nações centrais do capitalismo, desempenhando portanto, entre nossos povos, um papel “antinacional”.

[Continua...]

 

Referências bibliográficas

CUEVA, Agustín. O desenvolvimento do capitalismo na América Latina. São Paulo: Global, 1983.

FERNANDES, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

HAYA DE LA TORRE. La devoción por Lênin (original: Claridad, nov. 1924, ano 2, n.7). Vanguarda Aprista. Disp: vanguardiaaprista.com. Acesso: 01/ago/2017.

IANNI, Octavio. O labirinto latino-americano, Petrópolis (RJ): Vozes, 1993.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. Lenine e a IIIª Internacional. Lisboa: Estampa, 1971.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1987.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa Ômega, 1986.

LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina. São Paulo: Perseu Abramo, 2006.

LUXEMBURGO, Rosa. A questão nacional e a autonomia. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Lima: Amauta, 1989 [1928]

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência (trad. Marcelo Carcanholo e Carlos E. Martins). México: Editora Era, 1990 [1973].

MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2017 [1968].

MARTINS-FONTES, Yuri. Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2018.

MARTINS-FONTES, Y. STRUWKA, S.; ALVES Jr., P.. Pensamento crítico e questão nacional na América Latina do entre-guerras. In: SUZUKI; NEPOMUCENO; ARAÚJO (orgs.). A dimensão cultural nos processos de integração entre países da América Latina. São Paulo: PROLAM-USP/FFLCH-USP, 2021. Acesso: 6 jun. 2022. Disp: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/download/735/653/2420?inline=1

MARX, Karl. O Capital: para a crítica da economia política (Livro I, volume II). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 2000 [1942].

RAGO FILHO, Antonio. Sob este signo vencerás! – a estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista. Cadernos AEL, v.8, n.14/15, 2001.

VIEIRA, C. A. Cordovano. Passado colonial e reversão no Brasil contemporâneo. In: LIMA Fo.; MACEDO; NOVAES (orgs.). Movimentos sociais e crises contemporâneas: à luz dos clássicos do materialismo crítico (v. 3). Marília (SP): Lutas Anticapital, 2018.

 

[1]     Doutor em História Econômica (USP/CNRS), com pós-doutorados em Ética e Filosofia Política (USP) e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP); escritor, filósofo, professor; coordenador do Núcleo Práxis da USP.

[2]     Doutora em Psicologia Social (USP); professora-adjunta da graduação e pós-graduação da UNIR (RO); membro do Movimento de Mulheres Camponesas e coordenadora do Núcleo Práxis da USP.

[3]     Doutor em Sociologia (Unesp); professor-adjunto de História da Unilab (BA); coordenador do Núcleo Práxis da USP e membro do Centro Integrado de Investigação Transdisciplinar ‘Cultura, Espaço e Memória’ da Universidade do Porto.

[4] Caio estende essa sua ideia do Brasil à América Latina em um interessante manuscrito, infelizmente pouco conhecido e que não foi ainda publicado em livro devido a problemas ligados a direitos autorais, já que o autor não chegou a liberar publicamente sua obra, e seus herdeiros ainda detém os direitos econômicos sobre os escritos e divulgação das ideias do marxista; vide: “Zonas tropicais da América” (11/07/1936), pertencente ao Fundo Caio Prado Jr./ Arquivo IEB-USP: referência CPJ-CA024a, p.89-117 (caderno).

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum