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"Fuzilar a petralhada" é discurso de ódio e acumula cadáveres

"Petralhada" é uma figura de linguagem que simboliza os grupos historicamente perseguidos e mortos pelo status quo na história do Brasil

Escrito en Opinião el
Jornalista (USJ), mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutor em Ciências Socais (PUC-SP). Professor convidado do Cogeae/PUC e pesquisador do Núcleo Inanna de Pesquisas sobre Sexualidades, Feminismos, Gêneros e Diferenças (NIP-PUC-SP). É autor do livro “A construção da heternormatividade em personagens gays na televenovela” (Novas Edições Acadêmicas) e um dos autores de “O rosa, o azul e as mil cores do arco-íris: Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente” (AnnaBlume).
"Fuzilar a petralhada" é discurso de ódio e acumula cadáveres
"Fuzilar a petralhada" é discurso de ódio e acumula cadáveres. Reprodução/ redes sociais / Youtube

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a professora e pesquisadora Clarissa Piterman Gross (FGV-Direito) afirma que a declaração de Jair Bolsonaro, durante a campanha presidencial de 2018, de que iriam "fuzilar a petralhada" não configura discurso de ódio. 

Especificamente, Gross afirma: "É uma fala grosseira, tosca, ignorante. É triste que tenhamos como presidente uma pessoa que se coloque no debate político de forma tão ríspida e violenta. Mas não me parece que naquele contexto o presidente estava afirmando que os militantes do PT não deveriam ter direitos protegidos de forma igualitária". 

"Petralhada" ou "petralha" é um termo que foi criado por um jornalista durante os processos do chamado "mensalão" e, rapidamente, se tornou uma forma de ofensa contra os militantes e simpatizantes ao Partido dos Trabalhadores, mas também se expandiu para pessoas de esquerda no geral, principalmente entre aquelas que atuam com direitos humanos. 

Devo discordar profundamente da professora e afirmar que sim, a declaração de Bolsonaro, assim como tantas outras, configura discurso de ódio porque, ao contrário do que ela coloca, ela prevê não apenas a eliminação de um determinado grupo social - os petistas - mas também a revogação do direito à existência de tudo aquilo que se aproxima do termo "petralhada" e que, logo, deve ser fuzilado. 

Ainda como justificativa para embasar a sua posição, Gross afirma que o contexto em que foi dito "vamos fuzilar a petralhada [...] não era o de defender a prática de crimes contra militantes do PT", mas que em outro contexto a referida frase poderia sim "significar incitação ao crime". Aqui é o reino da contradição: quando um emissor emula estar com um fuzil e em seguida aponta para um determinado grupo social e convoca os seus seguidores a fuzilá-los, logo matá-los, não cabe tergiversação ou escapes teóricos, pois tal discurso opera na esfera da desumanização do outro para que ele possa ser eliminado. Isto se chama ódio.

No começo da entrevista, quando Gross é questionada sobre a definição do discurso de ódio, ela recorre ao fato de que "na legislação brasileira, o conceito de discurso de ódio não existe para fins de restrição de liberdade de expressão. Ou seja, a lei brasileira não proíbe discurso com base nesse conceito". Esse argumento, ainda que baseado em texto jurídico (que não é uma coisa morta, portanto, passível de crítica e renovação) é perigoso e equivocado. 

O argumento utilizado pela pesquisadora é o mesmo que foi usado pelo fundamentalismo brasileiro em sua longa campanha contra o PLC 122/06, que visava tornar crime a LGBTfobia no Brasil e, entre outras coisas, mirava os discursos de ódio propagados por líderes religiosos contra as LGBT. 

Assim como Gross, a extrema direita brasileira, em sua campanha contra a tipificação criminal dos atos de ódio contra as LGBT, afirmou que o PLC 122 atentava contra a liberdade de expressão e que os religiosos não praticavam discurso de ódio e que tampouco negavam a existência das vidas LGBT, mas “apenas condenavam a sua prática”. Vejam como eles se utilizaram de subterfúgio jurídico e religioso para se esconderem.  

Negar a prática de um grupo social, é negar a sua existência. Não à toa, os líderes fundamentalistas do Brasil apelidaram o PLC 122 de "Lei da Mordaça". Não é à toa que essa extrema direita de ontem é a mesma que sustenta Bolsonaro hoje e que estava com ele em 2018 abaixo da frase “vamos fuzilar a petralhada”. 

Não é necessário aqui fazer uma lista sobre o resultado produzido pelos incansáveis discursos ou declarações de Bolsonaro. Frases como “vamos fuzilar a petralhada” ou “as minorias terão de se adequar as maiorias” carregam profunda violência e ódio ao outro. Pouco importa se no âmbito do texto jurídico existem delimitações para essa e aquela forma de expressão, como disse anteriormente, os textos jurídicos possuem imprecisões e falhas, não à toa ganham novas interpretações a todo momento. 

Assim como fizeram os fundamentalistas, o argumento da pesquisadora busca levar a discussão para o âmbito da liberdade de expressão e aqui caímos em uma discussão gasta: Bolsonaro não disse “vamos derrotar os petistas”, ele disse “vamos fuzilar a petralhada”, o que não deixa muito espaço para interpretação: fuzilar, matar, eliminar e negar a existência de um grupo social. 

“Vamos fuzilar a petralhada” é discurso de ódio que acumula cadáveres ao longo dos últimos anos, mas também ao longo da história brasileira. Trazer o fuzilamento do Outro para o âmbito da liberdade de expressão é um tremendo equívoco... 

Não se trata de uma “fala tosca”, trata-se da negação da existência, logo, discurso de ódio. 

 

 

*Esse texto não reflete necessariamente a opinião da Revista Fórum


 

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