CONCILIAÇÃO DE CLASSES

Vamos voltar às condições que elegeram Bolsonaro? - Por Raphael Fagundes

A conciliação de classes não será como a de 2002. Muita coisa mudou no mundo do trabalho de lá pra cá. Vamos precisar ter muito cuidado para não repetirmos o mesmo erro que nos levou a essas trevas que vivemos nos últimos seis anos

Jair Bolsonaro.Créditos: Clauber Cleber Caetano/PR
Escrito en OPINIÃO el

A imprensa deu uma ampla dimensão à carta pela democracia, um reboot da carta lida em 1977 pelo ex-integralista Goffredo da Silva Telles Júnior. O destaque dado pela imprensa tradicional foi por conta de que a assinatura do documento contava com grupos de diversas classes sociais, unindo, em nome da democracia, capital e trabalho.

A candidatura de Lula na chapa de Geraldo Alckmin é uma estratégia para assemelhar o momento ao que o levou a vitória em 2002. A burguesia não temia mais o petista, já que seu vice era um grande empresário (coincidentemente do mesmo partido que hoje está o presidente Jair Bolsonaro).

Os governos petistas foram marcados pela conciliação de classes. Os bancos se enriqueceram e empresários brasileiros chegaram a estar entre os 10 mais ricos do mundo.

As camadas populares também tiveram ascensão e diversos membros da classe D atravessaram as barreiras e chegaram a classe C. Seguridade alimentar, ampliação do acesso às universidades etc..

No entanto, o capitalismo liberal transforma-se após a crise de 2008 e exige mudanças em prol da maximação dos lucros dos investidores. Para tal foi implantada uma austeridade econômica na qual seria necessário reduzir os gastos públicos.

Com a saída do Estado no projeto de ascensão social entra o discurso da meritocracia. É um discurso endossado pelo presidente: “'A culpa é do governo', 'cadê o meu emprego?'. Você tem que correr atrás. Eu não crio emprego. Quem cria emprego é a iniciativa privada”.[1]

Subir de vida através do próprio esforço! As big techs se aproveitaram desse cenário para fomentar uma nova relação entre capital e trabalho: o trabalho por encomenda. Aplicativos são desenvolvidos no qual a figura do capital praticamente desaparece e o trabalhador se vê como empreendedor de si. Deste modo, a ideia de meritocracia ganha uma nova base material, no mundo das relações reais de existência.

O golpe foi dado para implantar esse projeto. A imprensa fabricou um ódio ao antigo modelo de conciliação de classes e decidiu defender o teto de gastos e lucro dos investidores. Todo esse ódio e as dificuldades sociais promovidas pela doutrina do choque neoliberal para implantar essa nova relação entre capital e trabalho pariu o bolsonarismo.

Será possível retornar ao modelo de conciliação anterior ao golpe de 2016? E se voltarmos? Não iríamos parir um outro Bolsonaro? A classe trabalhadora deve confiar mais uma vez nessa aliança? Estamos cansados de saber que a história já se repetiu várias vezes como farsa.

É lógico que vivemos outros tempos. O risco à democracia pela ascensão do fascismo é de fato uma questão atual. Mas a crise da democracia não é fruto dessa conciliação de classes que quando recebe qualquer abalo tende a arrebentar a corda para o lado dos trabalhadores?

Aqui os políticos conservadores imitam os políticos republicanos dos EUA criando um etos hipócrita de se são contrários aos ricos, banqueiros etc.. Uma espécie de justiça econômica sobre as bases de um populismo falso. Trump conquistou grande parte dos eleitores ressentidos pela globalização focada no interesse do mercado financeiro. Os perdedores tiveram o seu voto. “Essa característica da política da humilhação faz com que seja mais inflamável do que outros sentimentos políticos”[2], explica Michael J. Sandel.

Mas no Brasil, Bolsonaro tenta criar dois discursos. Um para os pobres, pautado no Auxílio Brasil; e outro para a classe média baseado na meritocracia. Intervém na economia para estimular o consumo, como no preço da gasolina, mas aciona o não intervencionismo quando se trata de uma política de geração de empregos. Os empresários “mamíferos”, que mamam na teta do governo, e os banqueiros supostamente indignados com o Pix, foram os que assinaram a carta pela democracia. O presidente cria sua imagem popular em uma falaciosa luta contra as elites. Isso é o verdadeiro populismo…

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, escolhido pelo próprio Bolsonaro, disse que “não é verdade que os bancos perdem dinheiro com o Pix".[3] Os bancos estão cada vez mais ricos. E muitos empresários aliados ao governo Bolsonaro também.

Nossa versão da história é diferente da dos EUA. Embora compartilhemos de hipocrisia semelhante. Se nos Estados Unidos, de acordo com Sandel, o partido democrata, para conseguir reconquistar o apoio das massas, precisa rever a política favorável ao mercado[4] (coisa que mesmo com o Bidenomics não vem dando certo), no Brasil, a esquerda precisa acenar para o setor financeiro se quiser garantir a possibilidade de chegar ao poder. A aliança do PT com antigas figuras da direita toca justamente neste ponto.

A conciliação de classes não será como a de 2002. Muita coisa mudou no mundo do trabalho de lá pra cá. Vamos precisar ter muito cuidado para não repetirmos o mesmo erro que nos levou a essas trevas que vivemos nos últimos seis anos. Desconfiar, criticar e refletir sobre a relação capital e trabalho será a chave para pensarmos o Brasil que teremos pela frente.

[1] https://www.google.com/amp/s/economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/07/21/bolsonaro-ironia-empregos.amp.htm

[2] SANDEL, M. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 39.

[3] https://www.google.com/amp/s/www.infomoney.com.br/economia/nao-e-verdade-que-os-bancos-perdem-dinheiro-com-o-pix-diz-campos-neto/amp/

[4] SANDEL, M. Op. Cit., p. 34.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum