OPINIÃO

Algo mas? Tirando o corpo fora - Por Mouzar Benedito

"Nesta fase horrível em que dificilmente passa uma semana sem que a gente perca um amigo ou uma amiga, a tendência é viver uma angústia sem fim. Então, por mais que sinta, tento levar a vida meio no 'algo mas?'"

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“Algo mas?”, minha mulher me pergunta com sotaque espanhol, quando quer, de maneira gozadora, liquidar um assunto. Eu também pergunto pra ela assim.

É mais ou menos uma forma de tirar o corpo fora, livrarmo-nos de um compromisso. Pra nós é brincadeira, mas sua origem não é.

Como surgiu isso?

Nesta fase horrível em que dificilmente passa uma semana sem que a gente perca um amigo ou uma amiga, a tendência é viver uma angústia sem fim. Então, por mais que sinta, tento levar a vida meio no “algo mas?”. Mas não consigo. Fico remoendo. Há poucos dias, foi-se o Fernandão, amigo querido demais.

Agora foi-se o Jun Nakabayashi, indiretamente “responsável” pelo “algo mas?”, que, ao contrário da pergunta, era sempre solidário e não fugia dos compromissos. Ser solidário era praticamente uma ideologia dele, um dogma. Nunca perguntou “algo mas?”.

Militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), foi exilado na Alemanha e, de volta ao Brasil, muito grato pelo apoio que teve lá, militava numa organização que dava apoio a exilados. Cordial, boa praça, tratava todo mundo muito bem. Mesmo depois do fim das ditaduras latino-americanas, sua casa vivia cheia de estrangeiros, inclusive europeus em cujos países, como a França e a Alemanha, não havia repressão política nem motivo para se exilar. Mas eram “companheiros” e recebidos como tal pelo Jun. Passavam meses, às vezes mais de um ano, na casa dele. Uma época, lá pelo fim dos anos 1970, eu o conheci na casa de um outro amigo, o Airton, que também tinha sempre a casa cheia de gente. E cada vez que ia lá, encontrava o Jun (muitas vezes com a companheira Célia) e algum estrangeiro que se hospedava por não sei quanto tempo na casa dele. Eu me lembro, por exemplo, de um basco e uma colombiana muito simpática, acho que exilados. Mas nem sempre eram exilados os que ficavam um bom tempo na casa do Jun, com casa, comida e roupa lavada.

Quando a Célia (minha companheira, xará da companheira dele) e eu fomos a Cuba pela primeira vez, em 1985, ainda não era possível fazer uma viagem diretamente para lá, não havia voos Brasil-Cuba e o passaporte vinha carimbado que não valia para Cuba nem para a China. Tínhamos que ir até o Peru para continuar para Cuba. Na volta, pretendíamos dar uma parada em Lima. O Jun soube e me procurou:

— Tenho uma amiga alemã que mora em Lima... É muito amiga mesmo, passou seis meses aqui em casa e quer receber amigos meus lá. Você vai ficar hospedado na casa dela.

Falei que passaria lá, mas só para cumprimentar a amiga dele, se ele quisesse eu poderia levar alguma encomenda. Se ela quisesse sair uma noite com a gente, ótimo. Passaríamos quatro dias em Lima, na volta de Cuba. Ele insistiu: a gente tinha que se hospedar na casa dela, em Miraflores, bairro rico de Lima. E ficou insistindo, disse que ia ligar pra ela, avisando da nossa ida.

Na volta de Cuba, com uma parada no Panamá, chegamos a Lima e a Célia queria ir direto pra um hotel. Falei da alemã, ela não queria. Falei que o Jun tinha insistido, ela estava esperando. Contrariada, topou. Liguei antes, pra ver se o Jun tinha mesmo combinado com ela. Ela atendeu e disse que sim, que o Jun tinha avisado da nossa ida, e era pra gente ir para lá. Deu o endereço e fomos, de táxi. A Célia continuava contrariada e eu ficava falando positivamente da hospedagem na casa da alemã, afinal era amiga do Jun e morava havia anos em Lima, ia nos dar boas dicas de lugares pra conhecermos.

Tocamos a campainha, ela nos atendeu na porta, nem chamou para entrar, e avisou que, enquanto íamos do aeroporto para lá, havia reservado pra nós um hotel baratinho mas bom, no centro da cidade. E antes que desse tempo pra qualquer conversa, perguntou:

— Algo mas?

Não. Não havia nada mais a falar com ela. Fomos pro hotel, uma espelunca. Ficamos lá só uma noite, mudamos no dia seguinte. Mesmo eu que me hospedei em espeluncas no Brasil inteiro, achei que era ruim demais. E ela nem nos procurou.

Daí surgiu o nosso “algo mas?”.

De volta a São Paulo, encontrei o Jun e evitava falar no assunto, mas ele perguntou e acabei contando como foi. Ficou decepcionado, enquanto alguém dizia a ele que uns europeus o exploravam. Não sei como ficavam sabendo da boa acolhida que teriam e aproveitavam. Faço um parêntese aqui: milhares de brasileiros exilados foram muito bem acolhidos na Europa. E esta história aqui também não significa uma “eurofobia”. É que conheci europeus excelentes e europeus como os deste relato que, quando vinham aqui, se hospedavam em casas como a do Jun, sem gastar nada. Lá, fingiam que nem conheciam a gente. Alguns tentaram se encostar numa república em que morei.

Bom... Um tempo depois, o Satoru Takaesu amigo meu e do Jun, ia passar mais de um ano em Paris, como correspondente de um jornal escrito em japonês, do sogro do nosso amigo, e o Jun falou de um grande amigo francês, que ficou um ano e tanto morando na sua casa, em São Paulo. Eu estava junto e gozei, falei pro Satoru não levar muito a sério os amigos do Jun, contei a história do “algo mas?”. Mas o Jun insistia:

— Esse é amigo de verdade.

Como era só pro Satoru fazer um contato, talvez fazer amizade, já que tinha alugado previamente um apartamento, levou o telefone do francês, pra falar com ele quando chegasse lá. Eu ainda brinquei:

— Diga logo que você quer só conversar com ele, senão ele pensa que vocês vão querer se hospedar lá...

E o Jun continuou falando bem do amigo.

Uns dias depois de chegar a Paris, o Satoru me mandou uma carta contando que ligou pro amigo do Jun. Ele atendeu, o Satoru perguntou, em francês, se ele era o fulano de tal (deu nome e sobrenome), o sujeito disse que sim. Em seguida o Satoru disse era amigo do Jun, de São Paulo, e queria conversar com ele. O francês respondeu em tom bravo:

— Nunca estive em São Paulo e não conheço nenhum Jun.

E desligou o telefone.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum