À sombra da escalada do conflito na Faixa de Gaza e a prolongada luta do povo palestino pulsa o urgente debate sobre a questão feminina no Islã. Mulheres, crianças e velhos são as vítimas mais vulneráveis à violência colonial em curso no Oriente Médio. No caso da população feminina, as vestes delas sintetizam o choque cultural entre o ocidente cristão e o oriente majoritariamente muçulmano e amarra as contradições da defesa da liberdade dos ocidentais.
O estigma carregado pelas mulheres muçulmanas pode ser simbolizado por uma simples veste: um lenço que conhecemos no Brasil com o hijab. Não por acaso a islamofobia se confunde com a hijabfobia. No Ocidente, os não muçulmanos direcionam opressão gerada na desinformação, no preconceito e na arrogância sobre o véu islâmico que desqualifica e desrespeita a identidade dessas mulheres.
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Além disso, esse foco na veste das mulheres muçulmanas cristaliza a leitura de que os homens muçulmanos são "terroristas" e elas são "oprimidas". O viés religioso limita a fé islâmica à religião que "retira" os direitos sociais das mulheres e impõe penas severas atribuídas à Sharia - o sistema jurídico do Islã.
Proibição do véu islâmico na França
O uso do véu islâmico se transformou em uma maneira de categorizar racialmente as mulheres muçulmanas. Na visão de mundo de não muçulmanos, essa veste submete as mulheres à uma posição de inferioridade e falta de autonomia. Exemplo dessa leitura ocidental do que vestem as mulheres do Islã está na França, o berço da democracia burguesa e que impõe restrições legais ao uso de indumentárias muçulmanas.
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A professora Francirosy Barbosa escreveu o artigo "Sem lenço, sem abaya, sem burquíni – a islamofobia francesa". Antropóloga e professora do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) pesquisa há 25 anos a questão das mulheres muçulmanas, 10 deles como revertida ao Islã e quatro fazendo uso do véu islâmico.
No texto, Francirosy avalia que a proibição de vestimentas muçulmanas pela França não é justificada. Ele cita que naquele país vivem mais de 6 milhões de muçulmanos, e mais ou menos 2 mil mulheres usavam essas vestes.
A dupla associação ao terrorismo e à opressão de gênero dada às mulheres tira delas a sua própria autonomia, desconsiderando suas escolhas. A proibição do uso dessas vestimentas islâmicas tenta esconder certo 'discurso civilizacional' e 'ideológico”'e promove o apagamento da diferença, ampliando a hostilidade ao Islã e aos muçulmanos.
A professora também faz uma provocação ao ressaltar que, por um lado, é muito comum na nossa sociedade nos assustarmos com a polícia da moral no Irã e dissertar como “conhecedores” de causa sobre ela, que persegue mulheres sem o lenço. Por outro lado, nos silenciamos, tanto na Europa quanto em outros lugares do Ocidente quando se trata de garantir o direito à diferença e ao uso dos paramentos religiosos.
Hijabfobia e islamofobia no Brasil
Aqui no Brasil, uma boa pista sobre visões brasileiras sobre a questão palestina está nos dados do Primeiro relatório sobre islamofobia no Brasil. O estudo mostra que um grupo particular enfrenta níveis mais elevados de violência e respondeu em maior número ao questionário: as mulheres revertidas ao Islã. [O abraçar a fé islâmica é considerado como reversão, ou seja, um retorno à fé primária].
Essas mulheres são as mais afetadas pela violência, que ocorre predominantemente em espaços públicos e, em muitos casos, dentro de seus próprios núcleos familiares. Das mulheres revertidas que responderam à pesquisa, 71% relatam usar o hijab, em comparação com 59% das mulheres nascidas muçulmanas. Além disso, elas são mais propensas a relatar experiências de preconceito religioso do que as mulheres que nasceram muçulmanas.
As mulheres entrevistadas compartilharam histórias de agressões físicas, sexualização, perda de oportunidades de emprego e, em alguns casos, até desenvolvimento de transtornos psicológicos devido aos constrangimentos causados pelo preconceito religioso, levando algumas a recusar o uso do hijab.
No caso das mulheres revertidas ao Islã, a pesquisa também revelou casos de assédio, discriminação e hostilidades por parte de homens com os quais tiveram contato íntimo, que passaram a constrangê-las após sua conversão para o Islã.
Vestes do Islã
Para compreender o que representam as vestimentas muçulmanas, é preciso tentar aprender sobre o Islã. A religião monoteísta criada no século VII está pautada pelo equilíbrio nos papéis sociais masculinos e femininos. Definir o que é a fé islâmica desdobra o sentido religioso e envolve civilização e modo de vida, ingredientes que podem esclarecer do que se trata ser muçulmano.
A tentativa de se aprofundar sobre o entendimento do Islã exige um mergulho na riqueza da sua diversidade cultural, social e econômica na sociedade contemporânea. Na condição de segunda maior religião global em número de seguidores, essa fé abraça múltiplas perspectivas. O resultado é que há várias interpretações e práticas religiosas.
Nessa pluralidade, há também diversos tipos de vestimentas. Por isso, é comum que as pessoas confundam as vestimentas religiosas das mulheres muçulmanas. É importante notar ainda que não se pode presumir que todas as mulheres desejem usar coberturas em seus cabelos e corpos, pois as preferências individuais variam amplamente. O ponto crucial é evitar generalizações simplistas e reconhecer a diversidade de experiências e escolhas entre as mulheres muçulmanas.
Hijab - Vestimenta majoritária das mulheres muçulmanas ao redor do mundo. Em praticamente todos os países você encontrará uma seguidora do islã usando esse tipo. Consiste em um véu que se coloca ao redor da cabeça, cobrindo orelhas, pescoço, e o cabelo, e pode ser enrolado da forma que a mulher preferir.
Junto ao hijab, elas costumam usar roupas que escondem toda parte do corpo, excluindo o rosto, as mãos e pulsos, e pés. Além disso, não há regras, podendo usar roupas de todos os tipos, como calças, saias, vestidos e blusas de manga comprida.
Niqab - Véu que que deixa apenas os olhos à mostra. Costuma ser usado com outra vestimenta de corpo inteiro, quase como um pano que fica sobre a roupa de baixo. Para os homens também existem regras: roupas que escondam o joelho, ombros e umbigo, além do uso de um turbante.
Burca - A burca é uma vestimenta específica, que cobre todo o corpo, desde a cabeça até os pés, tendo uma tela entre os olhos para permitir a visão, mas ainda sim escondê-la. Essa veste é muito particular: ela é o símbolo do regime Talibã.
Existe moda no Islã?
Os teóricos da moda explicam que o sistema de vestimentas e indumentárias dos muçulmanos não pode ser considerado moda. Um desses estudiosos, Gilles Lipovetsky, no clássico "O império do efêmero" afirma que para ser considerado moda é preciso promover:
- Culto a fantasias e novidades
- Instabilidade
- Temporalidade
- Efemeridade
Nesse conjunto de características, não é possível chamar de moda as vestimentas do Islã. Mas, na prática, existe um mercado desses trajes e desse estilo de vida, com direito até ao nicho de alto luxo e a uma edição da Vogue, um ícone das publicações fashion.
Em agosto de 2016, a Condé Nast International lançou a versão virtual da Vogue Arábia. A publicação na versão em papel passou a ser publicada em 2017 sob o comando da princesa da Arábia Saudita Deena Aljuhani Abdulaziz, dona da multimarcas DNA.
Entre as marcas de alto luxo que atuam nesse nicho de mercado muçulmano tem o brasileiro Vincenzo Visciglia. Ele mantém a grife Aavva em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes, e atende celebridades da TV local a xeicas que podem pagar mais de R$ 100 mil em um vestido forrado de cristais.
A grife italiana Dolce & Gabbana, na coleção Primavera 2016, ofereceu roupas com estampas coloridas e florais para mulheres muçulmanas. Os itens foram confeccionados em cetim e outros tecidos finos. O argumento da D & G é que os muçulmanos são cerca de um quarto da população mundial, mas amplamente ignorados pelo mundo da moda.
A moda rápida, ou fast fashion, não fica de fora. Em outubro de 2015, a marca de roupas inglesa H & M lançou uma coleção na qual a top model escolhida foi a muçulmana Mariah Idrissi. Ela aparecia nas fotos usando um hijab para combinar com as peças.
Diversidade
A Gap, marca de roupas famosa por seu ethos totalmente estadunidense, mostrou em suas propagandas de volta às aulas de 2018 uma menina sorridente vestindo um hijab.
A Nike lançou seu primeiro hijab esportivo em dezembro de 2017, anunciado com elegantes fotos preto e branco de atletas muçulmanas bem-sucedidas vestindo o Pro Hijab decorado com o icônico swoosh (nome do logotipo famoso da marca).
Influenciadores digitais: Hijabi bloggers
Jovens, muçulmanas, apaixonadas por moda que começam a ganhar espaço entre as típicas blogueiras fashion. Elas desconstroem estereótipos, somam milhares de seguidores nas redes e vêm inspirando cada vez mais mulheres ao redor do mundo. Conheça algumas:
Summer Albarcha ficou conhecida com o blog “Hipster Hijabis”. Acredita ter tanto poder sobre as escolhas de moda quanto uma pessoa que não é muçulmana.
Inspirada na moda ocidental dos anos 40 e 50, Melanie Elturk é o rosto por trás do “Haute Hijab”, o primeiro blog criado no mundo sobre moda para muçulmanas.
Independente das cores, marcas e formas das vestimentas das mulheres muçulmanas, é importante ter em mente que essas irmãs não querem e não precisam serem salvas. Antes de abordar a questão feminina no Islã é preciso passar por uma desconstrução profunda sobre um feminismo branco ocidental. Para isso, é preciso compreender aspectos da religiosidade e da cultura em que estão inseridas essas mulheres.
É urgente abandonar a ideia de que a "libertação" das mulheres muçulmanas está ligada à sua vestimenta. Por outro lado, é crucial compreender que o nível de opressão não está determinado pelo que se veste, mas sim pela imposição de usar ou não usar determinadas vestimentas. Por isso, evite tirar conclusões precipitadas sobre o que desconhece, acolha e escute mulheres com ou sem véu islâmico e atue contra perseguições contra praticantes da fé islâmica no Brasil.
Para saber mais
Textos da professora Francirosy Barbosa
Diálogos sobre o uso do véu (hijab): empoderamento, identidade e religiosidade
Feminismo ocidental não pode ditar regras pra mulheres muçulmanas