REFLEXÕES

O algoritmo neoliberal: dos computadores humanos à algoritmização humana – Por Raphael Fagundes

Como os computadores humanos que dividiam a equação em pequenas partes, o neoliberalismo fragmentou a sociedade em diversos indivíduos com problemas individuais

Imagem Ilustrativa.Créditos: Pixabay
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Sérgio Amadeu, apoiado em Lucas Introna, Andrew Goffey e Robert Kowalski, começa seu artigo definindo algoritmo como “o conjunto de instruções introduzidas em uma máquina para resolver um problema definido”. Os algoritmos são também uma estrutura de comando para permitir que a programação aconteça, dando uma solução computacional a partir de estratégias lógicas.[1]

Mas os algoritmos têm uma longa história que começa nos computadores humanos. Peter Burke mostra que as mulheres foram proibidas de ter acesso a determinados conhecimentos. Uma espécie de ignorância imposta. Um tratado do século XVII sobre a educação das meninas, escrito pelo arcebispo francês François Fénelon, determinava que as mulheres só “recebessem instrução religiosa e fossem ensinadas a administrar uma casa e a ler e escrever. A aritmética também foi recomendada como útil para manter a contabilidade da casa”.[2]

No século XVIII, muitas destas mulheres ao lado de homens se tornaram computadores que realizavam cálculos extenuantes. No Observatório de Greenwich, já no século XIX, houve uma divisão do trabalho mental. Tatiana Roque explica que esse trabalho consistia “em reduzir cálculos matemáticos elaborados a operações aritméticas de rotina que pudessem ser realizadas por pessoas menos qualificadas e organizadas em tabelas”. De acordo com Roque, “o procedimento equivale a uma receita, que hoje denominamos ‘algoritmo’”. Cada etapa de uma equação era reduzida em tabelas “que seriam preenchidas por trabalhadores menos qualificados”.[3]

Charles Babbage, então, propôs a mecanização das contas aritméticas dando origem aos primórdios do computador-máquina. De modo que a habilidade de cálculo “deixou de ser sinônimo de inteligência” no decorrer do século XIX.

Mas foi durante a Guerra Fria que os algoritmos ganharam protagonismo devido à necessidade de tomar decisões. A simulação de decisões em caso de um ataque soviético foi o que impulsionou a escalada dos algoritmos.

Durante a Guerra Fria nasceu uma nova espécie de racionalidade. A Escola de Chicago adotou o conceito de “escolha racional” que entende a ação humana por meio do cálculo custo-benefício. Em meio ao macartismo, o “paradigma da escolha racional parecia ideologicamente neutro e enfatiza o individualismo”.[4] Como explica Joel Spring, muitos professores escaparam de acusações de comunistas e tiveram suas posições acolhidas ao adotarem esse ponto de vista.

De acordo com Roque, “foi nesse momento que se passou a conceber a racionalidade humana de modo similar aos algoritmos”.[5] Como um algoritmo que quer reduzir a complexidade aritmética a simples cálculos, o paradigma da escolha racional quer reduzir o ser humano à função de perdas e ganhos em uma tendência a maximizar os ganhos.

“Tarefas complexas, antes atribuídas a pessoas experientes e hábeis, com virtudes para julgar e avaliar cenários de modo original, eram reduzidas a sequências de passos automatizados”. Através de uma tecnologia mais complexa que a máquina de Babbage, decisões estratégicas são simuladas em computadores que criam cenários cada vez mais realistas, o que desembocaria nos videogames. Baseados nas escolhas sobre perdas e ganhos era possível simular por computador as decisões que as pessoas poderiam tomar. “Com base nesses pressupostos, bastante redutores, a racionalidade adquiria um aspecto algorítmico”.[6]

Podemos concluir que a consolidação do algoritmo só seria possível na sociedade neoliberal. Como os computadores humanos que dividiam a equação em pequenas partes, o neoliberalismo fragmentou a sociedade em diversos indivíduos com problemas (não apenas matemáticos) individuais. O paradigma da escolha racional é a base filosófica do neoliberalismo, pelo menos desde Friedman, Becker e Schultz.

Essa lógica é muito prejudicial à sociedade quando se junta a uma outra formação discursiva produzida pelo campo neoliberal: a de extrair para uso próprio o que é social.

Na visão neoliberal, a economia é um “local” em que cada indivíduo irá extrair recursos para saciar suas necessidades pessoais. Um lugar livre em que se compra ações, faz-se investimentos para se recolher os lucros. Se o indivíduo quiser criar uma instituição de caridade, escolas etc, ele tem o direito de fazer isto com as quantias provenientes do seu investimento. Esse raciocínio se expandiu para outras áreas como educação, saúde etc..[7] Não existe bem público, tudo é reduzido a vantagens individuais.

Por outro lado, “o Estado deve limitar-se a estabelecer normas aplicáveis a situações gerais deixando os indivíduos livres em tudo que depende das circunstâncias de tempo e lugar, porque só os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptar suas ações”.[8]

No entanto, de acordo com a ideologia da escolha racional, o indivíduo deverá individualizar o que é social mediante a lógica do custo-benefício. E na sociedade em que prevalece o Homo economicus, tudo se traduz em vantagens econômicas.

Tal raciocínio se tornou tão lógico que fica difícil pensar diferente. Tornou-se natural. É o que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista”. “Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato”.[9] A escolha racional apresenta-se para nós como um fato, não como um valor. E nós de fato a naturalizamos.

Flávio Dino concedeu uma entrevista para o jornalista Carlos Andreazza explicando os valores do comunismo (justiça social, acessibilidade aos produtos tecnológicos etc..). Andreazza e os outros jornalistas presentes riram de Dino. Esses valores são considerados fatos?

Determinados valores não podem ser automatizados. O algoritmo toma decisões, mas nunca baseado em justiça social. Esta não pode ser matematizada como a maximização de ganhos. Enfim, a algoritmização de tudo só é possível em um mundo neoliberal.

Se formarmos indivíduos dentro dessa lógica (como a proposta das reformas educacionais em várias partes do mundo), pouco diferentes serão de uma máquina. Por isso, a máquina vem tomando o espaço dos seres humanos. A máquina se tornou inteligente porque infelizmente, reduzimos a inteligência à suposta sabedoria de aproveitar o tempo para extrair o máximo de ganho. Portanto, uma educação humanista acaba se tornando antiliberal. A educação que visa transformar todos em empreendedores é o mesmo que algoritmizar indivíduos.

Não devemos ser contra a tecnologia. É como dizia Paulo Freire: “a formação técnico-científica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que a ciência e a tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua humanização”.[10]

Antes os computadores humanos, hoje algoritmos humanos. Esse projeto de formar algoritmos humanos, com objetivo de tomar decisões pautadas na lógica do custo-benefício nos levará a superação de nossos problemas atuais? Será que no intuito de formar indivíduos focados na maximização dos ganhos não estamos produzindo uma multidão de perdedores? Não existe um mundo somente de ganhadores.

 

[1] SILVEIRA, S. A. Governo dos algoritmos. Revista de Políticas Públicas, v21, n1, p. 267-281, 2016.

[2] BURKE, P. Ignorância: uma história global. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 48.

[3] ROQUE, T. O dia em que voltamos de Marte. São Paulo: Planeta, 2021, p. 121.

[4] SPRING, J. Como as corporações globais querem usar as escolas para moldar o homem para o mercado. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 26.

[5] ROQUE, T. p. 173.

[6] Id., p. 175.

[7] https://diplomatique.org.br/o-tempo-da-economia-e-o-tempo-da-educacao/

[8] HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 91.

[9] FISHER, M. Realismo capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 34.

[10] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 157.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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