"Eu estava dormindo antes. Foi assim que deixamos acontecer. Quando massacraram o Congresso, nós não acordamos. Quando culparam terroristas e suspenderam a Constituição, nós também não acordamos. Mas agora estou acordada”.
A reflexão que abre este texto é da personagem Offred, protagonista do livro "O Conto da Aia", de Margaret Atwood. Publicado originalmente em 1985, a obra causou grande alvoroço e se tornou um sucesso absoluto e um clássico contemporâneo. O motivo? Um grupo fundamentalista dá um golpe nos EUA, que deixa de existir e dá lugar à República de Gilead, sistema teocrático onde todas as mulheres passam a ser propriedade do Estado.
Mas qual é a relação da reflexão de Offred com o início do governo de Javier Milei, representante da extrema direita rentista? Os sinais não podem ser ignorados ou tratados como males menores.
Um vídeo compartilhado pelo presidente Milei dá o tom do que será - já está sendo - o seu governo: um regime de controle social (vida pública e privada) e incentivo à perseguição daqueles que não seguem a cartilha neoliberal.
Porém, há um detalhe no vídeo compartilhado por Milei que é profundamente assustador e confirma que o totalitarismo está em curso: nas imagens, rapidamente, podemos observar um anúncio eletrônico em um saguão que parece ser um terminal de transporte público onde se lê: "El que corta no cobra. Se te están obligando podés denunciar anónimamente Al 134". Em português: "Quem corta não recebe. Eles estão forçando você. Pode denunciar para 134".
Agora, imagine entrar em algum terminal de transporte público e se deparar com um cartaz te incitando a denunciar pessoas que não seguem a cartilha ideológica do governo de então? Isso se chama ditadura. Tal método foi utilizado por todos os regimes ditatoriais na América Latina e fora dela. Todo mundo é suspeito, ninguém confia em ninguém.
O cartaz que cria uma espécie de inimigo público - a esquerda - e que pode trazer consequências violentas, pois pessoas apoiadoras do regime de Milei podem - já devem se sentir - autorizadas a eliminar o "eles" citado no cartaz tirânico do governo argentino. A extrema direita adora usar o clássico distópico "1984" para apontar tiranias, mas quem aplica tal reeituário é a extrema direita rentista quando ocupa espaços de poder.
Em "O Conto da Aia", o "eles" do cartaz do governo de Milei são os 'traidores de gênero', feministas e comunistas, ou seja, os mesmos personagens perseguidos na distopia criada pela escritora Margaret Atwood.
A ministra do Capital Humano
Mas o infame cartaz do governo tirânico de Javier Milei vem logo depois do pronunciamento da ministra do Capital Humano, Sandra Pettovello, que merece nossa atenção pela estética adotada: com um tom de voz monocórdico, ela anuncia que o governo Milei vai cortar os benefícios e as portas do Ministério irão se fechar àqueles que se levantarem contra a gestão recém-empossada na Argentina.
O vídeo é um tanto aterrorizante, especialmente quando relacionado com a adaptação de "O Conto da Aia" para o streaming: para anunciar todo tipo de barbárie, mulheres com roupas claras, vozes monocórdicas e homens de pretos enfezados prestes a eliminar os adversários. São muitas semelhanças para serem tratadas apenas como coincidências.
Em "O Conto da Aia", Offred e outras mulheres despertaram depois de serem sequestradas pela teocracia, mas despertaram. As manifestações desta quarta-feira (20) mostram que boa parte da população está desperta. No entanto, a máquina estatal vai investir pesado em uma esfera que tem sido a aposta da extrema direita: a batalha pelas mentalidades e, no caso da Argentina, com um tempero a mais: o controle social e o incentivo à perseguição dos corpos rebeldes.
Como bem colocou Renato Rovai, editor executivo da Fórum, essa é a diferença entre Bolsonaro e Milei: o argentino já sabe onde o brasileiro errou e entendeu que é preciso ser ainda mais radical no que diz respeito a esmagar as forças progressistas com o uso da força do Estado. Neste sentido, além de se inspirar em "O Conto da Aia", o novo presidente da Argentina tem clara influência do método de governança adotado pelo fundamentalista Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, que esteve na posse do argentino.
Mile vai conseguir transformar a Argentina em uma autocracia? A conferir.