OPINIÃO

Salve o Carnaval da Democracia – Por Chico Alencar

Este ano, além do fim da pandemia, temos que comemorar a volta do país ao rumo certo. Nos livramos de um período de trevas, carregado de tristeza e de intolerância

Créditos: Prefeitura do Rio de Janeiro
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Após 2 anos com as fantasias guardadas, instrumentos silenciados, alegria contida por conta da realidade tenebrosa imposta ao país pela pandemia e a convivência com um governo negacionista, golpista, genocida, nada mais justo do que esperar que as ruas, nesse Carnaval, sejam tomadas por uma euforia contagiante.

Foi o que ocorreu, por exemplo, no ano seguinte à Gripe Espanhola, no início do século XX. Os jornais da época classificaram aqueles dias de Momo como o maior Carnaval de todos os tempos.

A folia sempre teve uma dimensão transgressora. Isso vem de longe. O entrudo, por exemplo, na sociedade da dominação escravizante era um "desabafo", um jogar de água e farinha para incomodar os bem instalados, um grito de alegria às vésperas da longa e tristonha Quaresma – continuação das mortificações da vida cotidiana.

Vem de longe e tem múltiplas origens. O sapateiro português José Paredes virou "Zé Pereira" e, na capital do Império, lá por 1850, saiu batendo bumbo pelas ruas do Rio, seguido por gente feliz e irreverente, com apitos, gaitas e latas: "Viva o Zé Pereira/ que a ninguém faz mal/ viva a brincadeira dos dias de Carnaval!" Para a elite aristocrata fazia... Como suportar aquela alegria?

Batuques na senzala, na cozinha, mesmo que "sinhá não quisesse", já eram prenúncios das eletrizantes baterias das escolas de samba – que cada vez mais, em seus enredos e apoteóticos espetáculos, ensinam a resistência, o olhar crítico, a liberdade: "Brasil chegou a vez/ de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês!"

Este ano, além do fim da pandemia, temos que comemorar a volta do país ao rumo certo. Nos livramos de um período de trevas, carregado de tristeza e de intolerância, marcado por um governo protofascista.

Podemos até saudar esse Carnaval como sendo o “Carnaval da Democracia”. Sendo assim, que os foliões ocupem as ruas da cidade, carregados de vibração contagiante. Uma sensação semelhante ao descrito por Paulinho da Viola ao ver um desfile da sua Portela: “senti meu coração apressado/ todo o meu corpo tomado/ minha alegria voltar”.

Que rufem os tambores; que a purpurina cintile nos corpos; que o confete e a serpentina deem o ar de sua graça; que as pastoras entoem a plenos pulmões os sambas; que as marchinhas ecoem através das tubas, trompetes e saxofones; que as lindas fantasias improvisadas tomem as calçadas; que metrô e ônibus estejam lotados de foliões; que os blocos desfilem toda sua irreverência e as escolas suas majestosas fantasias e enredos.

Meu xará Chico, o Buarque, com todo o seu talento, expressou em um lindo samba o sentimento de todos: alívio e alegria por termos virado essa “página infeliz de nossa história”. Diz assim: “Que tal um samba? / Puxar um samba que tal?/Para espantar o tempo feio/Para Desmantelar a força bruta/ Para remediar o estrago/ Que tal um trago?/ Um desafogo, um devaneio (...) Então, que tal puxar um samba? Puxar um samba legal/ Puxar um samba porreta/ Depois de tanta mutreta/ Depois de tanta cascata/ Depois de tanta derrota/ Depois de tanta curtida/ E uma dor filha da puta, que tal?/ Puxar um samba/ Que tal um samba?

Viva o Carnaval! Viva a Democracia!

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.