OPINIÃO

Lula deve governar “a frio” ou “a quente”? - Por Valerio Arcary

O bolsonarismo não é um tigre sem dentes. O governo Lula vai precisar de mobilização social. “A frio”, o Brasil não muda

Lula em evento com indígenas em Roraima.Créditos: Ricardo Stuckert
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Nunca fiar de quem uma vez te enganar

Não cantar vitória antes do tempo.

Mais vale uma palavra antes que duas depois.

Ditados populares portugueses.

1 - A orientação do governo Lula, mesmo antes da posse ainda no final de 2022, quando foi negociada a aprovação da PEC da Transição, foi a busca de uma concertação com Arthur Lira e Centrão para garantir a governabilidade. O que poderia ter sido uma manobra tática plausível, diante da emergência imposta pela necessidade de garantir verbas para o Bolsa Família ausentes do orçamento público deixado pelo governo Bolsonaro, se consolidou como uma escolha estratégica. É verdade que há realidades que se impõem, e não dependem de nossa vontade. Mas é, também, verdade, que, depois da vitória eleitoral de 2022, mesmo que apertada, há novas possibilidades. Temos uma maioria reacionária no Congresso Nacional. Mas é possível pressioná-la de “fora para dentro”.

2 - Uma análise lúcida deve avaliar, necessariamente, que qualquer acordo com Lira e o Centrão é frágil, portanto, transitório. Ainda que consideremos que o projeto do governo Lula deva se concentrar, na conjuntura atual, no combate ao perigo do bolsonarismo, e na necessidade de evitar uma recessão imposta pela política monetária de taxas de juros reais exorbitantes, o que está em jogo é mais grave. Uma governabilidade “a frio” repousa no afã de construir uma maioria no Congresso Nacional que tem um custo muito alto.

3 - O preço mais imediato da concertação são as emendas parlamentares e das comissões que substituíram as emendas de relator, mas são da mesma natureza. O problema não se reduz às dezenas de bilhões de reais distribuídos aos deputados e senadores. Embora esta despesa não seja irrelevante, a questão de fundo permanecerá intacta e incontornável. O governo estará sob a permanente chantagem de Arthur Lira procurando impor um veto a qualquer proposta de reforma que contrarie os interesses de classe que o Centrão representa. 

4 - É possível pensar uma estratégia diferente? Existe outro caminho? Sim, existe, mas teria que ser uma governabilidade construída na conquista de uma maioria social, não somente parlamentar. Uma maioria social só pode ser forjada com muita luta. Luta pública que exige do governo protagonismo para impulsionar mobilização de massas, por exemplo, para que a extrema-direita seja isolada, investigada e Bolsonaro, também em função do escândalo das joias, seja punido. Luta pública para que as punições às empresas que aproveitaram a desregulação da reforma trabalhista para contratar terceirizadas que usam trabalho escravo não se reduzam a multas. Não podem ser somente as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, ou as Centrais sindicais, a apoiar a ida às ruas. 

5 - A questão de fundo é que a derrota eleitoral de Bolsonaro mudou, de forma favorável, a relação política de forças, mas ainda não alterou, de forma qualitativa, a relação social de forças. A primeira remete às condições de disputa entre as instituições, e da luta de partidos. Ficou melhor, porque o governo é a principal instituição do regime. Tem um peso maior que os Tribunais Superiores, órgãos não eleitos, e o Congresso, onde há uma pulverização de poder. Mas a segunda, que precisa ser avaliada em um grau de abstração mais elevado, remete às posições de força respectivas das classes, frações de classe e grupos sociais. Neste terreno, a luta de classes nua, crua e dura, ainda não saímos de uma situação defensiva.

6 - O desafio mais complexo é encontrar o caminho para uma reunificação da classe trabalhadora. Saímos do processo eleitoral com uma imensa parcela daqueles que vivem do trabalho divididos. A maioria dos assalariados que ganham até dois salários mínimos, das mulheres e LGBT’s, dos jovens e nordestinos votaram em Lula. Mas a extrema-direita teve a maioria dos votos dos que ganham além de dois salários mínimos, do voto masculino, e do sul e sudeste. Esta divisão é uma tragédia. Sem a sua superação não é possível alcançar um patamar mais elevado de disposição de luta.

7 - Sem levantar a “moral” ou estado de ânimo da classe trabalhadora não é possível uma nova maioria social que garanta sustentação para a mobilização de massas. Atos de “vanguarda”, mesmo na escala de dezenas de milhares, são úteis e cumprem um papel, mas não bastam. “A frio”, o Brasil não muda. Sem o engajamento do governo e, em especial, de Lula, não são possíveis ações na dimensão necessária para mudar a relação social de forças. Serão possíveis? Só podemos saber testando. Vai ser preciso confiar na classe trabalhadora, e nos movimentos sociais populares e rurais, de mulheres e negros, estudantis e indígenas, ambientais e culturais.                                                                                                                                                                              

8 - Devemos aprender as lições do Chile e da Colômbia. Até agora Boric fez uma aposta, Petro fez outra. Boric decidiu tentar governar “a frio” para não provocar os inimigos de classe e as Forças Armadas. Resultado: o governo chileno teve uma derrota política séria porque a nova Constituição, que recolhia o impulso de mudanças das imponentes mobilizações de 2019,  não foi aprovada. Petro decidiu governar “a quente”. O governo colombiano tomou a iniciativa de destituir a cúpula das Forças Armadas, foi para “cima” e vem chamando às ruas sucessivas manifestações de massas pedindo apoio para reformas que contrariam os interesses empresariais. São dois caminhos táticos distintos.

9 - Não podemos esquecer, tampouco, as lições do segundo mandato de Dilma Rousseff. Quando a maioria da classe dominante se unificou, entre o final de 2015 e 2016, e decidiu convocar mobilizações reacionárias às ruas, o governo demorou para reagir e, mesmo acossado pelo perigo real e imediato de golpe parlamentar mascarado de impeachment, não chamou a sua base social para as ruas. Ocorreu uma “divisão de tarefas”. Coube, essencialmente, ao PT e CUT tentar responder aos milhões nas ruas que gritavam “nossa bandeira jamais será vermelha” e “vai para Cuba”. Foi um grave erro de estratégia. Não podemos saber se o desenlace teria sido diferente, claro. Mas teríamos resistido em melhores condições.

10 - Hoje, não há perigo real e imediato semelhante, sobretudo, depois da derrota do levante golpista de 8 de janeiro, mas Bolsonaro, ainda que derrotado, mantém uma enorme audiência. O bolsonarismo não é um tigre sem dentes. O governo Lula vai precisar de mobilização social. “A frio”, o Brasil não muda.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum