OPINIÃO

Vizinho – Por Luis Cosme Pinto

O elevado ainda era novato quando, num dia qualquer de garoa, nasceu o nome de guerra: Minhocão

Imagem ilustrativa.Créditos: Prefeitura de São Paulo/Reprodução
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Ou a roupa encolheu ou o corpo cresceu. Com pouco pano para tanta carne, o terno preto expôs os pulsos, estrangulou a cintura, grudou nas coxas. Óculos pesados e gumex em excesso também não ajudaram. Aos trinta e oito anos, o governador biônico de São Paulo parecia ter cinquenta.

Nada demais, a estética pouco importava naqueles tempos estranhos.

Sem pausas e apertando o microfone prateado na mão esquerda, o governador empilhou números.

14 meses de obras.

3 quilômetros de viaduto.

300 mil sacos de cimento.

70 mil carros por dia.

37 milhões de cruzeiros.

Estamos em 1969, o governador biônico de São Paulo é Paulo Salim Maluf.

Vejo o jovem Maluf num documentário sobre a construção do gigante de concreto, ferro e asfalto: o Minhocão.

A inauguração em 1971 entusiasmou donos de Sincas-Chambord, Fuscas, Opalas, que partiam de vilas distantes e até de Santos e de Campinas “só para dar uma volta com a família e conhecer o viaduto de pistas largas.”

Na contramão, a obra sufocou a praça Marechal Deodoro e avenidas ajardinadas de Santa Cecília e Campos Elíseos.

Mais foi menos.

Mais barulho, menos verde.

Mais fumaça, menos gente.

Mais frieza, menos luz.

A estrutura gigantesca impediu que o calor do sol iluminasse as calçadas e pistas lá embaixo. Era o início da deterioração de uma das regiões mais vibrantes de São Paulo, o centro. 

O elevado ainda era novato quando, num dia qualquer de garoa, nasceu o nome de guerra: Minhocão.

Grande, alto, sinuoso e - agora com o apelido – tornou-se íntimo da cidade. Logo a gente paulistana não lembrava mais o nome oficial, Elevado Presidente Costa e Silva, o general gaúcho que mandava prender e não deixava soltar.

Minhocão, isso sim era nome. Filho legítimo da sabedoria popular.

Sou vizinho do viaduto, ando nele por cima e por baixo. De bicicleta e a pé. Só e às vezes de mãos dadas. Se de segunda a sexta, a vista de carros é hostil para quem está nos prédios, de sábado a domingo olhar das pistas essas mesmas fachadas é se aventurar em outra cidade.

Quem me encara, lá de longe e do alto, é a antiga torre do Banespa com a bandeira paulista no topo; quem me atrai no meio do caminho, é o molejo do Copan, obra única do arquiteto das curvas; é, porém, outro prédio, com apelido de Copanzinho, que mais me encanta. Ele se chama Racy e também faz um “S” em 14 andares de suaves ondas cor de chumbo e janelas largas. A portaria de dois andares e escadas geométricas me paralisa pela ousadia do tamanho e desenho.  São os metros finais da São João, de Vanzolini e de Caetano, do côncavo e do convexo.

Vejo mais na arquitetura corajosa de uma época de transformações. Prédios arredondados, outros triangulares. Há os de pastilhas coloridas e ferragens douradas e prateadas. São testemunhas de uma cidade orgulhosa do centro com seus teatros, cinemas, cafés e gente, muita gente. Hoje, assim como o centro, os prédios estão sujos, quase todos pichados, mas ainda respiram. 

Também inspiram. Das janelas, em geral fechadas, brotam aos sábados e domingos, cantores, artistas, palhaços. Arte popular no palco de asfalto. Popular e de graça. O público - famílias, amigos e amigos de estimação –  aplaude e pede mais.

Num dia pista pra carros em outro passarela de gente, o Minhocão imita cidade. É traiçoeiro, escuro, poluído e, ao mesmo tempo, saudável, divertido, democrático.

Ninguém sabe a data com certeza, mas já foi anunciado: o Minhocão será fechado aos carros. Pode virar parque, ser demolido ou desmontado.

Alguns moradores querem parque, outros torcem para que o vizinho, simplesmente, suma. Os que vivem embaixo do Minhocão, em suas calçadas imundas, não foram consultados. O que diria a multidão abandonada de carroceiros, desempregados e mendigos sobre o destino do viaduto mais famoso do Brasil?                                    

*O escritor Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.