No próximo dia 7 de maio, em Brasília, haverá um julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que pode impactar na compreensão da justiça brasileira sobre a validade ou não do consentimento de uma mulher para que uma relação sexual comece ou, mesmo já iniciada, prossiga.
Trata-se da apreciação, pelos Ministros do STJ, de um importante recurso apresentado pela segunda vez pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Neste recurso, o MP apela para que seja reconhecido que é cabível seu pedido para restabelecimento da condenação do dono e atendente de um badalado bar da Asa Norte de Brasília, Gabriel Ferreira Mesquita, por cometimento de estupro.
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A presente situação no STJ é de que o próprio presidente do TJDFT reconheceu que o recurso do MPDFT é cabível, mas o subprocurador deu parecer negativo, segundo ele por falta de robustez de provas, ou seja, por falta de um 'Não' “sério” e “efetivo” da vítima. O ministro relator seguiu esse parecer. Traduzindo o juridiquês, o TJDFT reconhece que a vítima disse 'Não', mas que isso não é suficiente para comprovar um caso de estupro, pois a recusa dela não teria sido séria e efetiva. Ela não teria demonstrado a resistência necessária e o STJ, ao qual não cabe analisar provas, vai decidir se realmente cabe ao TJDFT qualificar a gradação de um 'Não'. Ora, se o 'não' tivesse sido efetivo, o estupro não teria se consumado.
O caso do dono do Bambambã Bar ficou conhecido em todo o Brasil por volta de 2020, quando a maioria de suas vítimas, que passam de uma dezena, começou a fazer seus relatos. O primeiro caso teria ocorrido em 2014 e são vários os processos em que o réu é acusado de abordagens violentas, que vão do abuso sexual ao estupro.
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Em agosto de 2022 ele foi condenado em primeira instância, pela 2ª Vara Criminal de Brasília, a 6 anos de prisão em regime semiaberto, mas em maio de 2023, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal invalidou o primeiro depoimento de uma vítima, das 12 denunciantes. Segundo a advogada dessa e de outras mulheres vítimas, foram até agora duas absolvições em dois dos três processos. Há três processos, nos quais constam 5 vítimas, que ainda estão em andamento e outros foram arquivados por mudanças na legislação em 2019. Cada um desses processos possui um número variado de vítimas.
E é aqui que chegamos ao objetivo deste artigo, que é o de alertar sobre a importância do julgamento de recurso especial do MPDFT do próximo dia 7 de maio. Até aqui, os argumentos utilizados pelos desembargadores para invalidar depoimentos são quase medievais. Se apoiam na lógica da resistência física da mulher ao estupro, algo que historicamente está vinculado a uma ideia da mulher que “naturalmente” resiste a uma investida sexual em defesa da honra, por proteção de valores morais e não por sua autonomia sexual. Nesta lógica, somente uma resistência física quase heroica poderia ser considerada como violada por um agressor.
A lógica da resistência física ao agressor está estruturada em um pensamento já ultrapassado e patriarcal, contra o qual há décadas de lutas das mulheres, baseado na defesa da honra, da honestidade ou da moralidade. Quando hoje, o que está em tela é a vontade da mulher diante de sua liberdade sexual e as mudanças legislativas e do próprio código penal vieram justamente neste sentido de tutelar essa liberdade e a dignidade sexual de cada ser humano. Vários tratados e convenções internacionais também apontam neste sentido.
Tal compreensão, que pode ser considerada arcaica nos tempos atuais, já foi há muito tempo atualizada, até porque como é mesmo que se mede a capacidade física de uma mulher para oferecer o máximo possível de sua resistência. Como provar que houve ou não demonstração dessa resistência se não há testemunhas, imagens, gravações de qualquer tipo? É por isso mesmo que o que prevalece hoje é o entendimento do consentimento para a configuração do crime de estupro. O entendimento é o de que há violência quando se dá seguimento a um ato contra a vontade da vítima. Depois do 'Não', TUDO é ilícito.
No artigo 213 [1] do Código Penal, atualizado pela lei 12.015 de 2009, não está previsto que uma reação extraordinária da vítima seja um requisito para a configuração do crime de estupro. E quando se exige isso para a caracterização do crime, está havendo uma violação deste artigo e também de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Um deles é a Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que na recomendação 35 do seu comitê de monitoramento, indica para os países signatários:
"Assegurar que a agressão sexual, incluindo o estupro, seja caracterizada como crime contra o direito das mulheres à segurança pessoal, física, sexual e psicológica e que a definição de crimes sexuais, incluindo o estupro marital e entre conhecidos ou parceiros, seja baseada na falta de livre consentimento e leva em consideração circunstâncias coercivas. Qualquer limitação de tempo, onde exista, deve priorizar os interesses das vítimas/das sobreviventes e considerar as circunstâncias que impedem sua capacidade de denunciar a violência sofrida para os serviços e autoridades competentes" [2].
No entanto, a atualização da legislação, incluído o protocolo Não é Não (Lei 14.786 de 2023), e as recomendações internacionais de convenções das quais o Brasil é signatário, não foram suficientes para impedir que desembargadores e subprocuradores tivessem entendimentos tão absurdos como os que relaciono a partir de agora. Os argumentos utilizados são os de que as vítimas não trouxeram provas “robustas” sobre a violência que sofreram, isso mesmo após 12 mulheres terem feito boletim de ocorrência e outras mais terem feito relatos de abordagens sofridas com o mesmo “modus operandi” pelo agressor.
Os desembargadores da segunda instância, que julgaram pela invalidação do primeiro depoimento de uma das 12 vítimas e pela consequente absolvição do acusado, alegaram que houve um 'Não' dado pela vítima, mas que ainda assim ela não “reagiu de forma séria e efetiva a fim demonstrar ao réu a sua inequívoca objeção” ou “a própria vítima disse que embora tenha pedido para o réu parar, ele teria continuado e ela não teve reação, só esperou acabar o ato”. Neste caso, ao contrário do que orientam as convenções internacionais, de proteger as mulheres vítimas de violência, os juízes protegem o réu ao alegar falta de prova de que “o réu tivesse a inteira compreensão de que a vítima passou a se opor de forma séria [3] àquilo que ele fazia”.
Agora, como é mesmo que é “se opor de forma séria”? Não basta um 'Não'? Ele precisa ser “sério”, “robusto”, “induvidoso”? Afinal, um 'Não' é um 'Não'?
Depois da decisão dos desembargadores pela absolvição do agressor e a apresentação do recurso especial do MP, um subprocurador, cujo parecer embasou a decisão monocrática de um ministro do STJ de não reconhecer o pedido de recurso, disse que “não houve demonstração, de forma induvidosa, que o réu constrangeu a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a praticar o ato sexual. Vítima que, embora tenha pedido inicialmente para o réu parar, não demonstrou dissenso diante da continuidade do ato”. O MP recorreu novamente e o que será julgado na terça, 7 de maio, é se o recurso será cabível ou não.
O STJ, na prática, vai julgar se o 'Não' é 'Não' ou se é preciso que o 'Não' da vítima seja “mais sério”, “mais forte”, “mais contundente”, “mais heroico”. Está havendo um julgamento sobre a gradação de um 'Não' e isso não existe na lei. Caso prevaleça esse entendimento, irá pairar uma enorme sombra de dúvida sobre o artigo 213 do código penal, por não se reconhecer como violência o que essas mulheres sofreram.
Afinal, o consentimento é ou não é o que determina a configuração dos crimes sexuais? Isso é algo que a justiça brasileira terá que decidir. Segundo a compreensão dos magistrados que aqui citei, como comprovar, por exemplo, o estupro sofrido dentro dos casamentos, que sabe-se ser cada vez mais denunciado. Depende da interpretação da “força” do 'Não' de uma mulher no leito conjugal pelo marido ou parceiro? Em quantas outras situações será impossível comprovar a contundência de um 'Não' e a capacidade de resistência física de uma mulher contra seu agressor?
A depender do resultado, a repercussão desse julgamento pode ser de amplo impacto em toda a sociedade brasileira, em especial obviamente para as mulheres, pois pode fazer retroceder o entendimento cada vez maior de que o consentimento para o ato sexual é o que delimita o que é ou não estupro. Inúmeras denúncias poderão ser questionadas e invalidadas caso o STJ dê esse recurso como improcedente.
*Notas
[1] https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/405
[2]Código Penal - Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
[3] grifo da autora
**Ana Prestes é cientista política e historiadora.