CRACOLÂNDIA

O dia em que comprei um pastel pra Beatriz, que fuma crack e lambe o lixo

Vista assim, mais de perto, não deveria estar muito além dos 18 anos. Antes de entregar a grana perguntei, sem rodeios: “você fuma pedra?”

Ceia de Natal na Cracolândia em SP; imagem meramente ilustrativa.Créditos: Lucas Meola - cedido pela Craco Resiste com exclusividade para a Revista Fórum
Escrito en OPINIÃO el

De onde eu almoçava dava pra ver tudo perfeitamente. Ela cambaleava, dançava e abria o lixo lentamente na beira da calçada. Cada pedacinho de papel ou embalagem vinha com um resto que ela lambia e comemorava. O último foi um pote de iogurte que ela buscava com os dedos e bebia.

Dali, ela seguiu para o lixo seguinte, poucos metros adiante. E a cena se repetia, com outras embalagens e restos, que ela pegava e comia repetidamente e alternava com passos de dança. Os funcionários do restaurante a repreenderam por ter deixado o lixo espalhado. Ela arrumou rapidamente e simulou gestos de luta de boxe.

Seguiu para o terceiro lixo. Neste momento, eu que já havia acabado, a alcancei: “tá com fome ainda?” E ela: “sempre”. Peguei uma nota do bolso e coloquei na direção da sua mão. Vista assim, mais de perto, não deveria estar muito além dos 18 anos. Antes de entregar a grana perguntei, sem rodeios: “você fuma pedra?”

Após um breve silêncio, respondeu sem vacilar: “fumo.” Neste momento, um sujeito se aproximou e disse: “eu também fumo, o que vocês querem aí?” Perguntei se ele conhecia a moça. Ele respondeu que sim, de vista. Insisti se queria alguma coisa e ele foi embora.

Não dei o dinheiro a ela. A moça se antecipou e resolveu: “não vou fumar, tô com fome, vamos ali”, e apontou pra uma pastelaria. Seguimos devagar pela calçada. Ao chegar no local, algumas pessoas comiam tranquilamente no sol do domingo. Perguntei o que ela queria. Respondeu, como das outras vezes, breve: “frango com catupiry”; “e pra beber?”: “suco de goiaba”.

Pedi e a funcionária me respondeu rapidamente: “tudo bem, mas manda ela esperar lá fora.” Disse ríspido que ela não estava fazendo nada e que iria ficar ali mesmo, como todos os outros. A atendente não retrucou e foi buscar o pedido. Assim que chegou, fomos embora.

Ela se sentou no chão, um pouco mais adiante e comeu o pastel em duas ou três mordidas, bebeu o suco e parou pra me olhar. Perguntei sua idade e seu nome. “Bia, Beatriz, tenho 19”. Respondi, estupefato, que Beatriz é o nome da minha filha mais velha. Ela me olhou novamente por alguns segundos e respondeu, com os olhos parados e quase sem expressão: “fazer o quê, né?”

O choro me explodiu. Fui embora com o nó na garganta enquanto a Bia ficou lá, escarrapachada na calçada após sua refeição.

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