CINEMA

Thriller com toques de erotismo: Motel Destino e Pisque Duas Vezes – Por Filippo Pitanga

Dois filmes debatem a sensualidade e questões de gênero na telona com muita tensão

Cena de 'Motel Destino'.Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

É interessante ter dois lançamentos em sinergia, bastante emparelhada, simultaneamente disponíveis no circuito de cinema brasileiro: “Motel Destino” do consagrado cineasta Karim Aïnouz e “Pisque Duas Vezes” de Zoë Kravitz, numa excelente estreia na direção em longas-metragens. E talvez seja ainda mais importante traçar paralelos em como estas duas linguagens e propostas, dentro do mesmo espectro, ressoam em culturas diferentes, do Ceará a Hollywood.

Em primeiro lugar, essa intensa novidade brasileira "Motel Destino", segundo longa do cearense Karim Aïnouz a disputar a Palma de Ouro em Cannes, mas seu primeiro filme a fazê-lo em língua portuguesa (o outro foi "Firebrand" em inglês). Thriller sensual com toque de erotismo e voyeurismo, com a revelação Iago Xavier e o consagrado Fábio Assunção, além dos incríveis Nataly Rocha (de "Justiça") e Yuri Yamamoto (de "Inferninho").

Cena de 'Motel Destino'

A trama começa, de fato, ao se adentrar o local-título, como um esconderijo da perseguição e falta de oportunidades do mundo de fora, mas cujo interior confinante apresenta tentações mais traiçoeiras do que as ameaças de outrora – vide os delírios e miragens, pesadelo acordado, com personagens do prólogo que ora reaparecem em fantasmagoria surrealista, além de bichos selvagens como espelho de si. É esta bestialização que traz uma das propostas, tanto estética quanto metaforicamente falando, mais intrigante no subtexto, como as pinturas penduradas nas paredes do motel, ou a coexistência de animais que vão desde os de estimação nos fundos do lugar, aos peçonhentos e carniceiros que invadem os quartos como simbologias de perigos iminentes.

As experimentações de cor e som são muito boas, como os gemidos de prazer constantes (de gente ou dos animais de estimação que vivem fornicando lá fora), apesar de que um pouco mais de coesão na estética dos fetiches alheios poderia entregar riscos mais calculados com a proposta da trama. Vide os vídeos de frequentadores do motel, ora com tratamento mais voyeur, à la Cronenberg, ora menos, mas o recheio entrega muito envolvimento da plateia com personagens, especialmente pela química dos 3 protagonistas. Temos o retorno, com garra, de Fabio Assunção a grandes produções, tanto no cinema como na tv, vertendo aqui sexy appeal em tensão e antagonismo na medida; e a entrega da versátil Nataly Rocha, entre humor e medo, para intermediar os perigos do triângulo amoroso com o marido e o amante (Iago).

E esqueçam aquela reputação equivocada (e injusta) da época da pornochanchada, pois o cinema brasileiro sabe lidar muito bem com a sensualidade cronometrada de suas personagens com naturalismo e sem objetificação, já que nudez existe em qualquer cinema do mundo, e, aqui, está a serviço da narrativa e da tensão. Além de que precisamos destacar as ótimas coreografias corporais (e muito mais líricas do que a polêmica vã de que poderia ser mais explícito do que Cannes aguentaria), sem falar nos monólogos escritos com garra no roteiro e na interpretação, principalmente de Iago (perdoados os exageros de deus ex machina, às vezes justificados e irônicos, como o do cavalo no final, que unifica finalmente a trama dos seres humanos com a dos animais, e noutras nem tanto).

Faltou um tico mais de voyeurismo e sintetizar melhor a resolução que possui muitos finais (dava pra tirar pelo menos 2), sem deixar de ser, ainda assim, uma experiência sensorial bem recompensadora. Deixem de preconceito casto rolando hoje em dia como se erotismo fosse sinônimo de pornografia (não é, e não encaremos isso como nenhum demérito nem para um, nem para outro), e vão conferir nosso cinema com pompa na disputa internacional do maior dos prestígios como o foi no Festival de Cannes, reconhecido pelo mundo todo!

Já "Pisque Duas Vezes" é estreia na direção em longas-metragens da atriz e cineasta Zöe Kravitz (filha do cantor Lenny Kravitz) e que traz seu companheiro na vida real, Channing Tatum, como antagonista num thriller sofisticado esteticamente (que oculta de modo esperto de início em qual subgênero cinematográfico se encaixa), além de grande elenco, com o retorno de Geena Davis ("Thelma & Louise"), Christian Slater ("O Nome da Rosa") e Haley Joel Osment ("O 6° Sentido"), e as novas divas Naomi Ackie (que foi Whitney Houston em "I Wanna Dance With Somebody") e Adria Arjona (hit de "Hit.man"); sem falar no ator-assinatura de David Lynch, Kyle MacLachlan, cuja presença já evidencia que a trama contenha desafios para o subconsciente do espectador (seja da ordem do fantástico ou do psicológico).

Cena de 'Pisque Duas Vezes'

A trama segue um grupo de mulheres, principalmente a partir da perspectiva de uma delas, uma garçonete (Ackie) que se apaixona por um magnata (Tatum), levadas para uma ilha paradisíaca em férias aparentemente dos sonhos com um grupo de homens milionários. Porém, os jogos e rituais regados a danças, banquetes e drogas parecem inocentes e cíclicos demais para não ocultar um lado obscuro sob tantas camadas de diversão. O que será que estaria acontecendo e por que a felicidade ininterrupta de todos impede que se enxergue ranhuras sob aquele paraíso?

Zöe Kravitz como diretora soube muito bem aproveitar a magia de Hollywood do próprio encanto com o elenco estelar e a confiança hipnótica na companhia deles para esconder a podridão ante tanto luxo; como a própria indústria permissiva a criar monstruosidades impunemente legitima tudo pelo status quo. A edição coloca cenas diurnas e noturnas intercaladas em looping como se nem pudéssemos contar mais quantos dias se passaram, ou mesmo quem está do lado de quem. Entre perfumes caros, roupas luxuosas (que estranhamente vestem as mulheres de modo sempre igual) e animais selvagens, que às vezes quebram intermitentemente a harmonia, a única consistência é a equipe de funcionários latinos (descendentes dos povos originários) e seus olhares honestos de esguelha, como verdade isolada naquela ilha (e nos EUA) – metáfora de como a base da pirâmide, a classe assalariada especialmente composta por imigrantes e representações oprimidas.

A "ação" esperada pela construção do suspense até demora um pouco a começar, porém é recompensadora, e não quer dizer que o tempo de desenvolvimento no miolo não seja igualmente prazeroso para oferecer análise minuciosa da dissimulação e hipocrisias do jogo entre as personagens. O próprio antagonista é muito bem desenhado, com matizes e ambiguidades que não são meramente monotemáticas. Há uma relação ali de interdependência (pelo menos na visão distorcida apresentada), não apenas de usurpação, dando mais obstáculos para a protagonista ter de superar dentro da verdade de si.

Vale dizer que há bastante semiótica para prestar atenção na simbologia desde das cores às formas com que o luxo é apresentado. As roupas, os contrastes, gestos e movimentos (seja das flores exóticas às cobras peçonhentas, seja da beirada na piscina sob o sol escaldante à coreografia de antes e depois de tomarem drogas alucinógenas como hippies... tudo tem significado). Ponto alto para a trilha e momentos dançados, inclusive de tensão (dança e suspense são sempre um plus difícil de equilibrar, mas igualmente valioso quando acertado).

O que fica da estreia marcante e elegante de Zöe Kravitz é um manifesto feminista tecido de modo singular e acessível (vide a presença de Geena Davis como homenagem extradiegética reintroduzindo-a merecidamente às novíssimas gerações), até porque os atuais tempos polarizados, que alegam de forma cínica estar cansados do "politicamente correto", são a própria textura do tear que está no tabuleiro do filme. Só não pisque duas vezes pra não perder e corra pro cinema para esta boa revelação.

Por fim, os dois filmes lidam de forma diferente com o sexo ou com o corpo como personagens, ainda mais nos tempos de hoje tão polarizados, por um lado com um excesso de exposição nas redes sociais, e, por outro, com alguns passos mais castos para trás, como reação. Porém, ambos debatem as repercussões disso, especialmente com o voyeurismo ou uma perspectiva que oculta a verdade sobre as relações interpessoais, como se justamente na era da hipersexualização de tudo e todos fosse mais necessário do que nunca falar sobre mútuo consentimento e autoconsciência do próprio desejo para se ter a emancipação de si. Ambos os filmes bastante responsáveis e criativos na construção alegórica deste discurso cinematográfico para novas gerações (e anteriores também).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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