A advocacia é uma ferramenta essencial para assegurar o acesso à justiça e a proteção de direitos fundamentais. Nos últimos anos, contudo, o conceito de "advocacia predatória" tem sido amplamente debatido. Essa prática ocorre quando o sistema judicial é explorado de forma inadequada, seja para dificultar sua operação ou para obter vantagens indevidas. Exemplos incluem o excesso de processos sem justificativa ou a fragmentação desnecessária de pedidos. Embora existam abusos evidentes que necessitam de repressão, é preciso reconhecer que a linha entre uma prática legítima e o abuso é cada vez mais sutil, especialmente em casos que envolvem múltiplas demandas relacionadas.
Orientações mais recentes aprovadas no Curso “Poderes do Juiz em face da Litigância Predatória” propõem diretrizes para identificar a prática, incluindo o fracionamento desnecessário de demandas e o ajuizamento de ações sem fundamentação adequada. Contudo, nem sempre a fragmentação de pedidos é sinônimo de má-fé. Muitas vezes, o advogado, ao buscar garantir o direito de seu cliente, adota estratégias processuais legítimas para evitar a perda integral de seus pleitos em uma única, e eventual, decisão desfavorável.
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A tese da advocacia predatória tem sido frequentemente apropriada por grandes violadores de direitos, que a utilizam como estratégia para deslegitimar demandas justas e dificultar o acesso do cidadão à reparação pelos danos sofridos.
Imagine um caso de relação bancária. Um cliente pode sofrer com juros abusivos, descontos indevidos e cobranças irregulares. Entrar com uma única ação pode concentrar riscos excessivos: um erro técnico ou um entendimento desfavorável pode comprometer todos os pedidos de uma só vez. Por isso, o desmembramento em ações específicas é, frequentemente, a estratégia mais segura para proteger os direitos do cliente. Essa prática, longe de ser abusiva, reflete o compromisso do advogado com a defesa efetiva dos interesses de quem representa. Não podemos falar aqui em advocacia predatória.
Considere outro caso: uma empresa fornecedora de energia não presta seus serviços de forma adequada, deixando uma cidade inteira sem eletricidade. Isso gera diversas ações judiciais, todas tratando do mesmo tema, como a reparação pelos danos causados. Seriam essas ações justificativas para caracterizar a advocacia predatória?
Agora, imagine uma empresa que não paga horas extras e férias remuneradas aos seus empregados. Como consequência, transforma-se em ré em diversas ações: algumas pleiteando o pagamento de horas extras, outras exigindo o cumprimento das férias remuneradas. Essa fragmentação poderia ser considerada advocacia predatória? Certamente não.
Entretanto, o que se observa é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Judiciário, em sua legítima preocupação com práticas abusivas, têm adotado medidas que muitas vezes prejudicam advogados que agem de boa-fé. A exigência de justificativas rígidas para a fragmentação de demandas e a imposição de sanções severas criam um ambiente de insegurança jurídica para os profissionais. Isso impacta diretamente a confiança do advogado em sua autonomia para decidir as melhores estratégias processuais.
De fato, práticas abusivas devem ser coibidas. É inaceitável que advogados utilizem o sistema judicial como ferramenta de fraude ou abuso de direito. Essas situações comprometem a credibilidade do Judiciário e desviam recursos valiosos de casos que realmente necessitam de atenção. Entretanto, é igualmente essencial diferenciar essas situações dos casos em que o advogado, ao distribuir várias ações, busca apenas proteger os interesses de seu cliente dentro dos limites éticos e legais.
É fundamental destacar que, na maioria das vezes, os advogados não têm intenção de sobrecarregar o sistema judicial, mas de atuar de forma preventiva e responsável. Presumir má-fé em toda e qualquer fragmentação é um erro que pode limitar o acesso à justiça e enfraquecer o papel do advogado. Não se pode confundir estratégia processual legítima com má-fé. Ao presumir abuso em toda fragmentação de demandas, cria-se um ambiente em que o advogado precisa se defender de acusações enquanto tenta defender os direitos de seus clientes.
A solução passa por dois pilares fundamentais:
- Critérios claros e objetivos: A litigância predatória deve ser identificada com base em evidências concretas de má-fé, e não em presunções generalizadas. É fundamental que o Judiciário atue com cautela ao aplicar sanções, considerando as peculiaridades de cada caso.
- Valorização da advocacia: O papel do advogado como defensor dos direitos do cidadão deve ser respeitado. Sanções devem ser direcionadas exclusivamente àqueles que eventualmente desvirtuam a profissão, não aos que a exercem com responsabilidade.
Devemos sempre destacar que é prerrogativa exclusiva do advogado, em parceria com seu cliente, determinar a melhor estratégia de defesa. Caso a fragmentação se mostre a abordagem mais eficaz, o advogado está plenamente legitimado a utilizá-la. Além disso, é crucial lembrar que as prerrogativas dos advogados não existem para proporcionar vantagens pessoais, mas para assegurar que possam exercer a profissão de maneira plena e eficaz na proteção dos direitos de seus clientes.
Além disso, é essencial promover um diálogo constante entre a OAB, o Judiciário e o conjunto da advocacia. Medidas punitivas não podem ser vistas como a única solução para coibir abusos. A educação continuada, o incentivo a boas práticas e o fortalecimento da ética profissional são fundamentais para construir um ambiente jurídico mais justo e eficiente.
Afinal, enquanto o combate à litigância predatória é necessário, ele não pode servir como obstáculo ao pleno exercício da advocacia e ao acesso à justiça. O equilíbrio entre combater o abuso e respeitar a atuação legítima do advogado é um desafio que exige vigilância constante e sensibilidade no tratamento das questões processuais. Proteger a justiça não é apenas combater abusos; é garantir que todos tenham a oportunidade de encontrar nela um porto seguro para seus direitos e aspirações.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum