Com quatro vitórias cada, a série “Xógum: A gloriosa saga do Japão” e o longa-metragem “Emilia Pérez” podem ter saído com o maior número de globos de ouro, inclusive a láurea de melhor filme em língua não inglesa para o segundo, que derrotou “Ainda Estou Aqui”... Mas nenhuma vitória foi tão significativa para os brasileiros quanto a atriz brasileira Fernanda Torres ganhar numa das mais prestigiadas categorias da noite, ao lado de algumas das indicadas mais renomadas de toda Hollywood, como Nicole Kidman, Angelina Jolie, Tilda Swinton e Kate Winslet (além do retorno de Pamela Anderson numa produção independente) – especialmente por ter se tratado do único papel em língua não inglesa e numa produção que se dá abaixo da linha do Equador, tão engajado quanto inspirador contra qualquer tipo de opressão histórica. Assim, Torres se torna a primeira artista brasileira a ganhar como melhor atriz em performance dramática no Globo de Ouro. *Confira lista completa de vencedores no final do presente texto.
Outros laureados da noite podem sugerir indicativos para o Oscar 2025, apesar de ser bastante importante lembrar que o Globo de Ouro não é um termômetro muito confiável para prever o pensamento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, já que se trata de votantes completamente diferentes: esta é eleita pelos sindicatos de Hollywood em cada segmento (sindicato de produtores, de diretores, de artistas etc); enquanto aquela é votada pela imprensa estrangeira – ou seja, não advém do mesmo parâmetro, apesar de ambas instituições estarem sujeitas ao mesmo sistema de lobby da maior indústria do mundo... Ainda assim, a premiação de Torres faz sim ela aparecer no mapa para os Estados Unidos, já que para um filme brasileiro poder aparecer em categorias afora de melhor filme internacional é necessária muita visibilidade.
Outros premiados confirmaram igualmente seus favoritismos, como “O Brutalista”, grande vencedor nas categorias de drama, com o reconhecimento como melhor filme dramático, direção e melhor ator para Adrien Brody; bem como Kieran Culkin, estrela de “Succession”, como ator coadjuvante pelo filme “A Verdadeira Dor” e “Emilia Pérez” que levou melhor filme de comédia ou musical, filme internacional, melhor atriz coadjuvante para Zoë Saldaña e melhor canção (“El Mal”) – se quiserem ler mais sobre a obra, sem spoiler, confiram a cobertura de sua exibição exclusiva no Festival do Rio pela Fórum clicando aqui. Além disso, a vitória da atriz em comédia ou musical para Demi Moore por “A Substância” (leia sobre o filmaço aqui) praticamente garante que ela será indicada ao Oscar ao lado das já favoritas Nicole Kidman por “Babygirl” e Angelina Jolie por “Maria”, fazendo com que as outras duas indicadas possam ser Karla Sofía Gascón pela personagem-título “Emilia Pérez”, que a tornaria a primeira atriz trans a ser indicada como melhor atriz, bem como uma disputa acirrada entre a própria Fernanda Torres, Tilda Swinton por “O quarto ao lado” e Cynthia Erivo por “Wicked”. Vale lembrar que a Academia não separa a categoria entre drama e comédia ou musical, sendo apenas 5 indicadas ao todo.
Precisamos nos debruçar, agora, um pouco mais sobre o fenômeno de “Ainda Estou Aqui”, um dos maiores sucessos de bilheteria e reconhecimento de público e crítica da história do cinema brasileiro. O presente texto talvez pareça chegar meio "atrasado", mas, na verdade, estava lá desde o princípio. Após assistir o longa umas 4x, mais do que nunca, é urgente escrevermos sobre ele, mesmo que possamos ler colegas do meio, reverenciados e até queridos, dizerem que já se havia escrito todo o possível acerca do tema. PORÉM... É bom reiterar quantas vezes seja preciso: as nuances e o prazer da teoria crítica residem justamente em sua inesgotabilidade, à despeito de sê-lo ou não um filme perfeito. Sem falar em toda a analogia política entre a ditadura militar e o momento atual de ataques à democracia que passamos, ressignificando ainda mais o contexto geral. Então, se estamos entrando no debate, vamos tentar extrair linguagem para além do conteúdo, linguagem a favor do conteúdo, a partir dos detalhes.
A primeira cena do filme é acertadamente um fluxo de consciência da memória. Estamos imersos, literalmente, nas águas do tempo, do mar metafísico (de outrora e do agora), com o acontecimento invadindo os sentidos -- estes sim o dispositivo estrutural do filme.
Os sentidos são primeiramente apresentados ao espectador para depois, aos poucos, serem retirados, um a um, como analogia de um horizonte ditatorial que eclipsaria tudo, até uma família com certos privilégios. -- Afinal, este é outro ponto polêmico dos debates atuais, de que a obra só apresentaria um viés da elite, quando, ao invés disso, exemplifica que uma boa história pode vir de qualquer origem, e representar a todo mundo pela identificação mais universal: a família.
Nadando no mar, que fica de frente para sua nobre morada na orla, com ouvidos submersos, Eunice não consegue fugir do barulho do helicóptero sobrevoando sua cabeça no desenho de som de Alan Zilli, Stéphane Thiébaut e cia. De início, um ruído surdo, mas que vai aumentando, também, no lugar de escuta para o espectador. Depois, somos apresentados ao paladar, com as refeições à mesa, sempre repleta de convidados. A excelente trilha sonora traz o tato e o toque, carinhoso, compartilhado. Enfim, são as fotos, os filmes caseiros e a TV que vão trazendo o olhar familiar sendo invadido pelas notícias sobre militares e a resistência à opressão.
O caminho inverso começa, de fato, quando a luz solar alaranjada, predominante na fotografia de Adrian Tejido, até agora, é obstruída e sombreada pelas cortinas fechadas nas mãos dos agentes do governo golpista, que levam o patriarca Rubens Paiva para nunca mais voltar... Este pequeno simbolismo se agiganta, seja na cenografia mais azul e acinzentada; seja na força cênica pura, emprestada do teatro, que transforma a casa em palco e possibilita a seus atores reações viscerais com a mera privação de luz; ou seja na forma como todo som emitido, a partir daí, será amplificado pelo vazio sepulcral no qual são mergulhados. Para além de toda a reconstituição de época e elenco magistral, este foi o primeiro momento em que o filme sinaliza que deixarás sua marca, e que dispensa subterfúgios ou efeitos grandiosos para obter imersão genuína pela própria base do que se queira dizer arte em qualquer lugar do mundo.
Evidentemente, as coisas sucedem a galope: do cárcere privado na residência dos Paiva, tendo que dividir a intimidade, a comida, o sono (ou a falta dele) com seus carcereiros armados de vigília constante capitaneados por Luiz Bertazzo, sempre no cômodo ao lado; à condução forçada até o batalhão, onde Eunice e a segunda filha mais velha, então encapuzadas, serão interrogadas e submetidas a uma tortura psicológica, emocional e física, sem sono, sem comida, sem repouso. O barulho de gritos agonizantes e a espionada de relance pelas frestas de portas abertas para torturas ainda piores não deixam de ser igualmente uma grande ameaça, sem falar no isolamento completo. Os sentidos são privados e distorcidos.
Mesmo depois de todo esse foco de ação, o filme consegue se desdobrar uma vez mais, porque, a personagem de Fernanda Torres precisa recuperar os sentidos, sua vida e a da família, tudo em suspenso devido às violências que sofreram desde o apagamento do patriarca. A atriz brilha agora como principal ponto de costura da retomada dos seus, e trabalha um lado demasiadamente humano nem sempre mostrado: o de quem sobrevive e se reconstrói, emocional, física, financeira e profissionalmente. Num país mais cindido e polarizado do que nunca, e de memória fraca, esquecendo os males da ditadura tão recentes e, por vezes, tão relativizados, é uma vitória ver o quanto o filme está tocando todas as bolhas, não importa a ideologia, justamente por causa desse retrato de uma família brasileira acima de tudo.
O foco central não deixa de pertencer à matriarca Eunice Paiva, interpretada de forma tão aclamada por Fernanda Torres, mas inúmeras seqüências são guiadas pelo restante do elenco, com cenas próprias para as filhas e o filho Marcelo, bem como para o patriarca, tanto de soslaio quanto, depois, na instância de sujeito oculto.
O que poderia ser calcanhar de Aquiles, caso não manejasse o coprotagonismo de todas essas personagens, vai se tornando em diversas estéticas criativas voltadas para a mise-en-scène em si: o prólogo com a fase infantil de Marcelo (Guilherme Silveira) ao adotar um vira-lata, estilo "coming of age" -- lembrando "O ano em que meus pais saíram de férias"; a metáfora fabular do dente de leite de Babiu (Cora Mora), que mais tarde se tornará a nadadora, como a ligação da mãe com a água (Olívia Torres); a camisa do pai vestida por Eliana (Luiza Kosovski), que sempre gostava de ouvir os papos de adultos; o amadurecimento a forcéps de Nalu (Bárbara Luz), mesmo que a mãe tente preservar sua juventude; e a metalinguagem com a sétima arte de Veroca (Valentina Herszage), uma licença poética que serve de alter ego para muitos jovens candidatos a cineastas da época e que foram obrigados a se exilar fora, mas já começavam a filmar com sua super 8 desde cedo -- emprestando às vezes bela plasticidade de película retrô ao longa.
Portanto, da mesma forma que o frame inicial, o último também volta ao olhar em testemunho da história, agora com outros artistas interpretando as personagens mais velhas, como Fernanda Montenegro no papel de Eunice. Eis o instante que reune os sentidos em prol da memória no subconsciente, só que agregando um diferencial: a dialética nos pontos de vista de a quem pertença a perspectiva dramatúrgica, já que o gatilho inicial é a adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, escrito em homenagem à própria mãe, mas que vai sendo ampliado por toda a família. Tal salto no tempo poderia até não ser essencial à narrativa em sua totalidade, porém, sem esta pitada de melodrama assumido, não teríamos tamanha multidão de público ovacionando em prantos de emoção ao sair da sessão com a catarse final -- que sabemos bem o quanto Montenegro é capaz de gerar para além de quaisquer excessos de tempo de projeção.
E, após 25 anos das indicações de "Central do Brasil" de Salles com Fernanda Montenegro, como só se fala agora da real chance brasileira não só de ser indicado, mas de ganhar nosso primeiro Oscar, em disputa com alguns francos favoritos internacionais, começaram debates sobre nosso merecimento, ou se apenas certo privilégio desta produção nos serviria de garantia... Isso não obstante uma poderosa filmografia nacional multipremiada de inúmeros outros nomes e territórios, e igualmente merecedora, que ainda não havia furado a bolha do lobby de Hollywood. Contudo, devemos ver esta oportunidade como porta de entrada para o nosso reconhecimento ainda maior lá fora, e não uma chance única e isolada -- vide um elenco coadjuvante bastante representativo de inúmeros nomes de nossa ampla filmografia de sucesso: de Maeve Jinkins e Camila Márdila a Marjorie Estiano e Carla Ribas, de Humberto Carrão e Dan Stulbach a Antonio Saboia e Daniel Dantas. Pois, só de estarmos falando disso até agora, já demonstra enorme potencial para muitos mais anos e obras brilhantes no prelo que virão para nos representar à excelência!
Confira a lista de vencedores do Globo de Ouro 2025
Melhor Atriz Coadjuvante
Selena Gomez, Emilia Pérez
Ariana Grande, Wicked
Felicity Jones, O Brutalista
Margaret Qualley, A Substância
Isabella Rossellini, Conclave
Zoe Saldaña, Emilia Pérez – VENCEDORA
Melhor Atriz em Série de Comédia ou Musical
Kristen Bell, Ninguém Quer
Quinta Brunson, Abbott Elementary
Ayo Edebiri, O Urso
Selena Gomez, Only Murders in the Building
Kathryn Hahn, Agatha Desde Sempre
Jean Smart, Hacks – VENCEDORA
Melhor Ator Coadjuvante
Denzel Washington, Gladiador II
Kieran Culkin, A Verdadeira Dor – VENCEDOR
Guy Pearce, O Brutalista
Jeremy Strong, O Aprendiz
Yura Borisov, Anora
Edward Norton, Um Completo Desconhecido
Melhor Ator de Drama em Série de TV
Donald Glover, Sr. e Sra. Smith
Jake Gyllenhaal, Acima de Qualquer Suspeita
Gary Oldman, Slow Horses
Eddie Redmayne, O Dia Do Chacal
Hiroyuki Sanada, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão – VENCEDOR
Billy Bob Thornton, Landman
Melhor Atriz Coadjuvante em Título para a Televisão ou Streaming
Liza Colón-Zayas, O Urso
Hannah Einbinder, Hacks
Dakota Fanning, Ripley
Jessica Gunning, Bebê Rena – VENCEDORA
Allison Janney, A Diplomata
Kali Reis, True Detective: Night Country
Melhor Ator Coadjuvante em Título para a Televisão ou Streaming
Tadanobu Asano, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão – VENCEDOR
Javier Bardem, Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos de Pais
Harrison Ford, Falando a Real
Jack Lowden, Slow Horses
Diego Luna, A Máquina
Ebon Moss-Bachrach, O Urso
Melhor Ator em Série de Comédia ou Musical
Adam Brody, Ninguém Quer
Ted Danson, Um Espião Infiltrado
Steve Martin, Only Murders in the Building
Jason Segel, Falando a Real
Martin Short, Only Murders in the Building
Jeremy Allen White, O Urso – VENCEDOR
Melhor Roteiro
Emilia Pérez
Anora
O Brutalista
A Verdadeira Dor
A Substância
Conclave – VENCEDOR
Melhor Comediante
Jamie Foxx, What Had Happened Was
Nikki Glaser, Someday You’ll Die
Seth Meyers, Dad Man Walking
Adam Sandler, Love You
Ali Wong, Single Lady – VENCEDORA
Ramy Youssef, More Feelings
Melhor Filme de Língua Não Inglesa
Tudo Que Imaginamos Como Luz
Emilia Pérez – VENCEDOR
The Girl With the Needle
Ainda Estou Aqui
The Seed of the Sacred Fig
Vermiglio
Melhor Ator de Filme para TV ou Série Limitada
Colin Farrell, Pinguim – VENCEDOR
Richard Gadd, Bebê Rena
Kevin Kline, Disclaimer
Cooper Koch, Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais
Ewan McGregor, Um Cavalheiro Em Moscou
Andrew Scott, Ripley
Melhor Atriz de Filme para TV ou Série Limitada
Cate Blanchett, Disclaimer
Jodie Foster, True Detective: Night Country – VENCEDORA
Cristin Milioti, Pinguim
Sofía Vergara, Griselda
Naomi Watts, Feud: Capote vs. the Swans
Kate Winslet, O Regime
Melhor Atriz em Filme de Comédia ou Musical
Amy Adams, Canina
Cynthia Erivo, Wicked
Karla Sofía Gascón, Emilia Pérez
Mikey Madison, Anora
Demi Moore, A Substância – VENCEDORA
Zendaya, Rivais
Melhor Ator em Filme de Comédia ou Musical
Jesse Eisenberg, A Verdadeira Dor
Hugh Grant, Herege
Gabriel LaBelle, Saturday Night
Jesse Plemons, Tipos de Gentileza
Glen Powell, Assassino por Acaso
Sebastian Stan, Um Homem Diferente – VENCEDOR
Melhor Filme de Animação
Flow – VENCEDOR
Divertida Mente 2
Memórias de um Caracol
Moana 2
Wallace & Gromit: Avengança
Robô Selvagem
Melhor Direção
Jacques Audiard, Emilia Pérez
Sean Baker, Anora
Edward Berger, Conclave
Brady Corbet, O Brutalista – VENCEDOR
Coralie Fargeat, A Substância
Payal Kapadia, Tudo Que Imaginamos Como Luz
Melhor Trilha Sonora
O Brutalista
Conclave
Robô Selvagem
Emilia Pérez
Rivais – VENCEDOR
Duna: Parte 2
Melhor Canção Original
The Last Showgirl – “Beautiful That Way”
Rivais – “Compress/Repress”
Emilia Pérez – “El Mal” – VENCEDORA
Better Man – “Forbidden Road”
Robô Selvagem — “Kiss the Sky”
Emilia Pérez – “Mi Camino”
Maior Evento Cinematográfico do Ano
Alien: Romulus
Os Fantasmas Ainda se Divertem: Beetlejuice Beetlejuice
Deadpool & Wolverine
Gladiador 2
Divertida Mente 2
Twisters
Wicked – Vencedor
Robô Selvagem
Melhor Filme para TV ou Série Limitada
Monstros
Bebê Rena – VENCEDOR
Difamação
Pinguim
True Detective: Terra Noturna
Ripley
Melhor Série de Comédia
Abbott Elementary
O Urso
Magnatas do Crime
Hacks – VENCEDOR
Ninguém Quer
Only Murders in the Building
Melhor Atriz de Drama em Série de TV
Kathy Bates, Matlock
Emma D’Arcy, A Casa do Dragão
Maya Erskine, Sr. e Sra. Smith
Keira Knightley, Black Doves
Keri Russell, A Diplomata
Anna Sawai, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão – VENCEDORA
Melhor Série de Drama
O Dia do Chacal
A Diplomata
Sr. e Sra. Smith
Xógum: A Gloriosa Saga do Japão – VENCEDOR
Slow Horses
Round 6
Melhor Atriz em Filme de Drama
Pamela Anderson, The Last Showgirl
Angelina Jolie, Maria Callas
Nicole Kidman, Babygirl
Tilda Swinton, O Quarto ao Lado
Fernanda Torres, Ainda Estou Aqui – VENCEDORA
Kate Winslet, Lee
Melhor Ator em Filme de Drama
Adrien Brody, O Brutalista – VENCEDOR
Timothée Chalamet, Um Completo Desconhecido
Daniel Craig, Queer
Colman Domingo, Sing Sing
Ralph Fiennes, Conclave
Sebastian Stan, O Aprendiz
Melhor Filme de Drama
O Brutalista – VENCEDOR
Um Completo Desconhecido
Conclave
Dune: Parte 2
Nickel Boys
Setembro 5
Melhor Filme de Comédia ou Musical
Anora
Rivais
Emilia Pérez – VENCEDOR
A Verdadeira Dor
A Substância
Wicked
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.