OPINIÃO

“Pacto da grande imprensa” e “colaboracionismo”; entrevista com pesquisadora da Ditadura Militar

Professora Beatriz Kushnir conversou com o colunista da Fórum Rodrigo Perez e falou sobre o papel da imprensa num dos períodos mais sinistros da História do Brasil

A professora Beatriz Kushnir.Créditos: Arquivo pessoal
Escrito en OPINIÃO el

Beatriz Kushnir é historiadora, professora da UNIRIO e presidenta da Associação Nacional de Professores Universitários de História no Rio de Janeiro (ANPUH/RJ). Autora do livro “Cães de guarda: jornalistas e censores: do AI5 à constituição de 1988”, finalista do Prêmio Jabuti em 2004, ela concedeu uma entrevista ampla falando sobre o papel da imprensa num dos períodos mais sinistros da História do Brasil.

Rodrigo Perez - Beatriz, sua tese foi defendida em 2001 na Unicamp e publicada em 2004, nos 40 anos do golpe. Na efeméride pelos 60 anos do golpe, poderíamos contar um pouco dessa pesquisa?

Beatriz Kushnir - Minha pesquisa inaugura uma análise ao pôr em perspectiva a ideia de resistência. Essa tomou corpo quando constatei que os primeiros dez censores que foram para Brasília quando da transferência da capital, eram jornalistas. E, sim, o Departamento de Censura de Diversões Públicas atuou nos períodos democráticos da República brasileira. Primeiro quis entender como jornalistas se tornaram censores e depois constatei que policiais atuaram como jornalistas. O objeto de análise foram os mecanismos da censura e os pactos de parte da grande imprensa com os órgãos de repressão. Ou seja, a colaboração. Mapeei, entre outros aspectos, os colaboradores no interior das empresas de Comunicação, que optaram pelo expediente de autocensura, temática delicadíssima para os jornalistas admitirem.

No caso específico, demonstrei o colaboracionismo da Empresa Folha da Manhã, responsável pela publicação do jornal Folha de S. Paulo, entre outros, aos órgãos de repressão e aos governos ditatoriais. Para demonstrar essa relação, foquei no jornal Folha da Tarde, do Grupo, que foi o braço operacional de uma decisão empresarial e, por isso, não pode ser apreendido separado da Folha da Manhã e da FSP. Realizei mais de 60 entrevistas com censores, jornalistas, colaboracionistas e militantes. E o livro é de difícil digestão porque ponho em xeque a ideia quixotesca de que o jornalista, mesmo no período do pós-1964, usou os jornais como uma frente de resistência, mas isso só ocorreu fortemente na imprensa alternativa, não na grande imprensa como um todo. Neste aspecto, a pesquisa também demonstrou esses esquemas em outras empresas, como a TV Globo e seu projeto de “Controle de qualidade”, contratando censores aposentados, e o Grupo Abril que enviava funcionários para dar curso aos censores de como agir com firmeza na ação censória. Tudo isso são abordagens inaugurais e desconheço trabalhos que discordem da ideia, ou a tenha alterado de algum modo.

RP - O que foi o jornal Folha da Tarde?

BK - Quando entrevistei Boris Casoy, para compreender a trajetória da FSP, mencionei a dificuldade em chegar ao senador Romeu Tuma, que foi diretor do DPF. Casoy então me explicou quem era o assessor de imprensa e o significado da frase “um jornal de maior tiragem”. Refiro-me a Antonio Aggio que me concedeu uma entrevista e se dizia que levava uma carabina para a Redação. A tiragem significava o número de tiras, policiais. É importante destacar que não usei entrevistas realizadas para projetos de memória de qualquer empresa, que são geralmente declarações “chapa-branca”. Entrevistei pessoalmente todos esses personagens. Assim como também a “redação militante” anterior, comandada por Jorge Miranda Jordão e onde estava Frei Betto, Clauset, Rose Nogueira, Merlino e tantos outros. Casoy também me disse que “por uma questão de sobrevivência”, o Grupo Folha “não tinha censor. O jornal tinha decidido não enfrentar o regime. Fez autocensura”. Portanto, a FT foi, a partir do assassinato de Marighella e a prisão dos jornalistas que atuavam na ALN, um jornal totalmente alinhado a colaborar com a ditadura civil-militar. A impressão que se tinha era de que havia um jornalista cobrindo fatos, décadas depois demonstrados como irreais. As notas dos órgãos de repressão eram publicadas como verdadeiras matérias jornalísticas. E, assim, neste processo de pesquisa conheci Ivan Seixas, cuja história pessoal e familiar de militância se tornaram centrais na minha análise, e a quem agradeço sempre a generosidade de tê-la partilhado comigo. Ivan leu na FT a manchete da morte de seu pai, mas quando retornou às sessões de tortura, ele ainda estava vivo, de modo que o seu assassinato já estava decretado.

RP - Como você faria um balanço da historiografia sobre o tema nos últimos 20 anos?

BK - Acredito que em 2004 vivenciamos o apogeu de uma série de trabalhos que foram gestados a partir do acesso aos acervos dos Dops/Deops, no fim dos anos de 1990, e do esforço do Arquivo Nacional em localizar e transferir conjuntos documentais, como a Divisão de Segurança a Informação/Ministério da Justiça. No período em que separa os 40 dos 60 anos, tivemos a instalação do projeto mais bem sucedido de trabalho em rede no Brasil, que é o Memórias Reveladas. Além disso, em 2011 houve a instalação da Comissão Nacional da Verdade no mesmo dia em que se decretou a Lei de Acesso à Informação (LAI), que destituiu a lei 11.111, de 2005 que permitia o segredo eterno do estado.

Assim a CNV coletou um manancial gigantesco de documentos em diversos suportes. Somam-se a esses as prospecções que o AN fez e recolheu aos seus depósitos. Por isto, me causa muita estranheza que retornemos a pesquisas já feitas e não mergulhemos profundamente nesses “novos” acervos, verdadeiro fetiche do pesquisador. Eu mesma já fui há, pelo menos, três bancas sobre a Veja ou sobre o Pasquim. Acredito que só iremos avançar ampliando o leque de consultas aos novos conjuntos documentais, mas, principalmente, também no aprofundamento teórico e no questionamento às fontes com outras demandas. Como digo aos meus alunos: os arquivos não falam, respondem. Expressão que se tornou título de um artigo meu. Portanto, aplicando a mesma pergunta ao mesmo conjunto documental não se vai produzir descobertas.

RP - Em que medida sua pesquisa auxiliou e auxilia no processo de justiça e reparação?

BK - Certamente este é o maior intuito de pesquisas que tem objetos da história política como foco de reflexão na história do tempo presente. Eu tenho por característica desempenhar uma militância nos objetos que escolho para pesquisar. Basta olhar um pouco a minha trajetória profissional. Nunca são ou foram escolhas de modismo. Sempre são análises na contracorrente. Assim para jornalistas/militantes que entrevistei, como também aos seus familiares, se estes foram assassinados pelos órgãos de repressão, a pesquisa publicada no livro Cães pode auxiliar, como muitos fizeram questão de me relatar. Os relatos e os documentos que localizei permitiram a legalização de questões jurídicas, profissionais, civis. Algo precisa ser sublinhado: a distância no tempo. Minha pesquisa foi feita numa concepção analógica, o com isto não quero dizer que o digital seja melhor. Voltamos sempre ao método. Mas conseguir as entrevistas que realizei e fazer os colaboradores falarem é algo impossível atualmente. Ou porque morreram, ou porque o clima político é outro. Além de tudo isto, recentemente soube do interesse do Ministério Público e da consulta ao meu livro por procuradores deste. Assim em breve essa pesquisa auxiliará em novos desdobramentos jurídicos. E sim, somos vaidosos de nossas conquistas para fora da bolha. Ter tido uma questão apontada no livro Cães reconhecida pela CNV como uma descoberta do meu trabalho é algo importante em várias dimensões, do pessoal inclusive. Refiro-me aos carros da Folha incendiados por militantes das esquerdas em retaliação ao empréstimo destes à repressão. 

RP - Enquanto orientadora de programas de pós-graduação, como percebe as pesquisas contemporâneas?

BK - Esse é um tema bastante caro e delicado para mim atualmente. Tenho visto inúmeros trabalhos, mesmo em tempos digitais, sinônimo de facilidade, que fazem um levantamento bibliográfico aquém do satisfatório. É claro que ninguém é obrigado a citar ninguém. Mas dois erros precisam ser evitados. Um é não dialogar com quem já trabalhou aquela questão e, portanto, se imputar uma descoberta que por vezes o colega já o tenha feito. Um segundo equívoco é diminuir as contribuições de um trabalho e assim, se atribuir uma descoberta que por vezes não exista. Venho de uma geração que demonstrar no labor acadêmico, o seu refinamento reflexivo e o seu conhecimento da bibliografia produzida eram sinônimos do trabalho de um intelectual, e, além disso, claro, o respeito aos pesquisadores que nos precederam. Por isso, insisto muito com os meus orientandos da importância de se conhecer profundamente os trabalhos produzidos pelos pares em um corte temporal amplo. Receio que em breve acreditem que citar Raízes do Brasil, por exemplo, seja algo arcaico, infelizmente. Volto aqui a importância de se debruçar sobre os arquivos com uma questão. Não esperar que os documentos te apresentem uma mirada. Mas, os documentos podem desestabilizar uma ideia inicial e, assim, como lembra Robert Darnton, é aí que devemos mergulhar. E, mergulhar é afundar (aprofundar), e, emergir (trazer à tona): esse é o percurso de uma pesquisa que se pretende exitosa.

Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar