O rock é antissistema? – Por Francisco Fernandes Ladeira
O rock não foi cooptado; ele foi, desde seu embranquecimento inicial, um produto consentido da máquina capitalista que soube, com perfeição, lucrar com a ilusão de rebeldia
Entre os diferentes gêneros musicais, o rock é talvez o único em que músicos e público não possuem apenas uma preferência sonora. Para além da música, devem adotar certa postura, ter a chamada “atitude rock n’ roll” e uma visão de mundo específica. Segundo muitos, essa postura significa, além de ter o gosto musical restrito ao rock, usar vestimenta específica (geralmente cores escuras), andar com os membros da tribo, ter um léxico próprio e, sobretudo, ser contestador dos valores vigentes. Alguns rotulam isso como “antissistema”.
Embora o termo “sistema” seja amplo, podemos compreendê-lo, pelo menos no Ocidente, como equivalente ao modelo econômico e civilizacional hegemônico: o capitalismo. Portanto, ser antissistema é sinônimo de anticapitalismo. No entanto, aí temos uma contradição. O rock se espalhou pelo mundo justamente com a expansão cultural da principal potência capitalista de nossa época: os Estados Unidos.
Eis a questão! O “sistema” não produz somente seus aparelhos de dominação e difusão – seja pela força, seja pelo aspecto simbólico. Para simular uma pseudotolerância, também permite a existência de certos setores “contestadores”, desde que não coloquem em risco a ordem vigente. Fazendo uma analogia histórica, assim como na época da ditadura militar brasileira havia o MDB, podemos dizer que o rock, no capitalismo, é uma espécie de “oposição consentida”.
O rock surgiu na década de 1950 como uma versão acelerada do blues – gênero musical criado por negros do sul dos Estados Unidos. Somente após seu “embranquecimento”, o rock passou a ser aceito pelo “sistema”. Nesse período, porém, ele não apresentava necessariamente um viés contestador. Alguns diziam que, no máximo, a forma de dançar o rock n’ roll era uma afronta aos valores puritanos da sociedade estadunidense. Nada além disso.
A partir dos famosos anos 1960, o rock passou a ser associado à contestação. Foi a época da psicodelia, da contracultura, do amor livre, das flores no cabelo, do movimento hippie e dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Porém, não se tratava de um tipo de posicionamento especificamente de esquerda, mas sim semelhante àquilo que conhecemos como “anarquista”. Tudo dentro dos padrões aceitáveis pelo “sistema”. Mesmo o uso de drogas, especialmente o LSD, era visto por membros do governo dos Estados Unidos como uma forma de manter os jovens alienados (no sentido ideológico do termo).
Com a crise capitalista da década seguinte, o rock se “radicalizou”. Surgiu o punk, com os Sex Pistols declarando anarquia no Reino Unido e suas letras raivosas como “Deus salve a rainha, ela não é um ser humano”, “não há futuro no sonho inglês” e “eu fico bravo, destrua”. Sendo o anarquismo “nem à direita nem à esquerda”, quem está em cima desse muro pode cair em qualquer um dos lados do espectro político. Em 2022, o ex-vocalista dos Sex Pistols, John Lydon, declarou ter “muito orgulho da Rainha”. Ele também já apoiou Donald Trump, chegando a usar o boné do movimento MAGA (Make America Great Again). Ironicamente, o ex-presidente dos Estados Unidos também se vende como “antissistema”.
Já na década de 1980 – o último período do rock no mainstream musical global –, o gênero flertou com o engajamento social, mas em nenhuma causa que pudesse colocar em risco o “sistema”. Limitava-se a “pautas consentidas”, àquilo que o professor Wilson Ferreira conceitua como “bomba semiótica do sim”, isto é, temáticas de fácil adesão, sem maiores polêmicas ou riscos para o status quo. Sting adotou o discurso ambiental. Bob Geldof se destacou pelo seu ativismo filantrópico (porém sem questionar os pilares do capitalismo). O hoje sionista Bono Vox homenageou Martin Luther King e militava pela “paz mundial”. Em contrapartida, outro grande nome da luta dos negros estadunidenses, Malcolm X, considerado perigoso pelo “sistema”, quase não foi lembrado nas letras do rock.
Atualmente, críticos como Regis Tadeu se questionam se o rock virou música de “tiozão”, cujo estereótipo é “homem com mais de cinquenta anos, barbado e sempre de camiseta preta com estampa de alguma banda antiga”. No debate público brasileiro, as vozes do rock mais estridentes estão à extrema direita, como Digão e Roger Moreira. Evidentemente, há nomes que militam em causas progressistas, como é o caso do apoio de Roger Waters ao povo palestino. Não por acaso, o ex-baixista do Pink Floyd foi demitido de sua gravadora, a BMG. Nas raras ocasiões em que o rock é realmente contestador e engajado, o “sistema” boicota.
Portanto, a história do rock como fenômeno cultural é a história de uma rebeldia administrada. Sua suposta “atitude antissistema” se revela, na prática, um produto do mesmo “sistema” que ele pretende contestar – uma válvula de escape ruidosa, mas inofensiva, que, no máximo, arranha a superfície da ordem vigente.
O rock não foi cooptado; ele foi, desde seu embranquecimento inicial, um produto consentido da máquina capitalista que soube, com perfeição, lucrar com a ilusão de rebeldia. Sua verdadeira contradição não está em suas letras raivosas ou guitarras distorcidas, mas em ser um grito que, no fim das contas, sempre ecoou dentro dos muros da fortaleza que jurou derrubar.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum