Opinião

O Brasil que concentra renda, terras e privilégios - Por Maria Luiza Falcão Silva

É verdade que o Brasil viveu, sob os governos petistas, a mais expressiva redução da pobreza de sua história

Escrito en Opinião el
Maria Luiza Falcão Silva é economista com mestrado em Economia pela University of Wisconsin-Madison e doutorado em Economia pela Heriot Watt - Escócia. É professora aposentada da Universidade de Brasília e foi assessora da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Seus trabalhos são voltados para as áreas de Economia Internacional, Economia Monetária e Financeira e Desenvolvimento Econômico . É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed).
O Brasil que concentra renda, terras e privilégios - Por Maria Luiza Falcão Silva
Imagem Ilustrativa. Tânia Rêgo/Agência Brasil

A desigualdade brasileira é um escândalo histórico — e, pior, uma vergonha que persiste. Após três mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e um mandato mais um ano e meio de Dilma Rousseff (PT), o país que prometia romper com seu passado excludente não conseguiu desmontar a máquina estrutural da concentração de renda e riqueza.

É verdade que o Brasil viveu, sob os governos petistas, a mais expressiva redução da pobreza de sua história — o país saiu do mapa da fome da ONU em 2014, com o salário mínimo valorizado em termos reais e o Bolsa Família beneficiando mais de 13 milhões de famílias. Mas o avanço foi interrompido brutalmente: entre 2016 e 2022, durante o ciclo Michel Temer (MDB)/Jair Bolsonaro (PL), o país voltou ao mapa da fome e viu crescer a extrema pobreza e o número de pessoas em situação de rua.

Hoje, em pleno terceiro mandato de Lula, a desigualdade brasileira voltou a patamares próximos aos observados antes dos avanços sociais da década de 2000, interrompendo a trajetória de redução que havia começado nos dois governos Lula e no da presidente Dilma Rousseff, num contexto de financeirização extrema, concentração fundiária e enriquecimento acelerado do topo.

O retrato numérico da desigualdade

O IBGE revelou que o índice de Gini — que mede a desigualdade de renda — ficou em 0,506 em 2024.  O valor mais alto da série, que foi de 0,544 em 2021, caiu para 0,518 em 2022 e 0,518 em 2023, conforme a PNAD Contínua. Os dados mais recentes mostram uma queda significativa, atribuída ao fortalecimento do mercado de trabalho, aumento do rendimento médio per capita e a programas sociais.  O Gini varia entre 0 e 1 — quanto mais próximo de zero menos concentrada é a renda. Em 2020, o Gini foi de 0,498.

Para se ter uma ideia mais clara, com um Gini de 0,518 em 2023, os 10% mais ricos concentraram 42,1% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres ficaram com apenas 12,7 %. A renda média domiciliar per capita atingiu R$ 1.848 em 2023, mas com distribuição altamente desigual em termos espaciais: no Nordeste, a média era de apenas R$ 1.145, enquanto no Sudeste ultrapassa R$ 2.300.

Em 2024, a Agência Brasil apontou que os 10% mais ricos ganham, em média, 13,4 vezes mais que os 40% mais pobres, e que o 1% mais rico recebe 36 vezes mais que os 40% de menor renda. A FGV/ IBRE confirma: entre 2017 e 2022, a renda dos milionários brasileiros cresceu 87%, enquanto o rendimento médio dos trabalhadores subiu menos de 15%.

O 1% mais rico detém cerca de 20% da renda total, e os 10% mais ricos (cerca de 20 milhões de pessoas) concentram quase 60% da renda nacional, segundo o World Inequality Database. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira (50%) fica com apenas 8,5% da renda (cerca de 105 milhões de pessoas).

Essa estrutura se manteve praticamente inalterada em vinte anos — uma prova de que o sistema tributário, o mercado de trabalho e o crédito seguem operando para o topo.

O ciclo petista: avanços e limites

É impossível negar o salto social obtido entre 2003 e 2014 durante governos petistas. Ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula, o Brasil criou 22 milhões de empregos formais, valorizou o salário mínimo em 74 % em termos reais e reduziu a pobreza extrema de 12 % para 4,8 %.

A renda dos 20% mais pobres cresceu mais que a dos 20% mais ricos. Essas políticas, somadas à expansão do crédito e da agricultura familiar, retiraram o país do mapa da fome da ONU em 2014.

Porém, a partir de 2015, com a crise política e o desmonte das políticas sociais, o processo de inclusão foi revertido. O governo de Michel Temer congelou gastos por 20 anos e Jair Bolsonaro promoveu o desmonte das redes de proteção social e aprofundou a financeirização da economia, que recompensa o rentismo e penaliza o trabalho.

Em 2021, no governo de Jair Bolsonaro, o rendimento médio real do trabalho caiu 7%, e a inflação de alimentos ultrapassou 14%, empurrando milhões de famílias de volta à miséria.

Quando Lula reassumiu, em 2023, 33 milhões de brasileiros passavam fome.

Financeirização e o novo rentismo

O Brasil transformou-se num paraíso para o capital financeiro. Com uma das maiores taxas reais de juros do planeta, o país remunera o capital improdutivo enquanto as empresas reduzem investimentos e o Estado carece de recursos.

Os cinco maiores bancos registraram, juntos, lucros líquidos superiores a R$ 145 bilhões em 2023, mais que o orçamento de todos os programas sociais somados.

O resultado é perverso: a renda do capital cresce dez vezes mais rápido que a do trabalho. O sistema tributário continua regressivo e anacrônico.

Enquanto trabalhadores pagam imposto na fonte, os super-ricos seguem isentos de tributar lucros, dividendos e grandes heranças.

Reformas tímidas, como a taxação de fundos exclusivos e offshores, esbarram na resistência do rentismo, que domina o Congresso e o debate público.

A consequência é a manutenção de um modelo perverso que concentra riqueza e desestrutura o mercado interno.

Terra, agro e os novos milionários

A desigualdade rural é o espelho da urbana.

O Censo Agropecuário 2023 mostra que 1% dos proprietários controlam quase metade das terras produtivas do país.

O avanço do agronegócio exportador — concentrado em soja, milho, carne e algodão — gerou uma nova classe de milionários e bilionários rurais, mas não se traduziu em empregos ou melhor distribuição.

De 2012 a 2022, o número de propriedades com mais de 10 mil hectares cresceu 22%, enquanto as pequenas propriedades encolheram. A renda gerada no campo se dolariza, escapa do país via lucros e dividendos e não retorna em investimento social.

O resultado é um Brasil de latifúndios e favelas crescentes, um país que exporta riqueza e importa desigualdade.

O rosto humano da exclusão: as ruas

A face mais cruel dessa estrutura é a explosão da população em situação de rua. Em março de 2025, o Cadastro Único registrava 335 mil pessoas vivendo nas ruas — 15 vezes mais que em 2013, quando Dilma ainda governava.

Entre 2023 e 2024, no terceiro mandato de Lula, o número cresceu 25%, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social. A maioria é negra (68%), homem (86%) e já teve emprego formal. São vítimas diretas do desemprego estrutural, dos aluguéis abusivos e da insuficiência de políticas habitacionais.

Trata-se de um país que naturalizou a miséria a céu aberto: famílias inteiras sob viadutos, idosos abandonados, jovens sem perspectiva.

O mesmo país que abriga a terceira maior frota de jatinhos particulares do mundo e que produz anualmente cerca de 354,7 milhões de toneladas de grãos (previsão para a safra de 2025), além de 31 milhões de toneladas de carnes (estimativa para 2025), totalizando mais de 385 milhões de toneladas de alimentos.

A produção brasileira de grãos e alimentos é suficiente para abastecer entre 800 milhões e 1 bilhão de pessoas. Essa capacidade supera em muito a população do país, que é de cerca de 210 milhões de habitantes, o que faz do Brasil um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo. 

Por que não avançamos

Três fatores explicam o impasse:

1-Estrutura histórica concentradora — a economia brasileira nasceu com a desigualdade inscrita no DNA: escravidão, latifúndio e exclusão educacional.

2-O poder do rentismo e do capital financeiro, que bloqueia qualquer tentativa de redistribuição estrutural.

3-A falta de continuidade das políticas redistributivas, ora sabotadas, ora esvaziadas.

Os programas de transferência de renda aliviam a pobreza, mas não alteram a estrutura patrimonial. Enquanto a elite financeira acumula fortunas, o país empobrece em silêncio.

O desafio do presente

O Brasil de 2025 é uma contradição viva: a inflação controlada e o crescimento modesto do PIB convivem com salários achatados, trabalho informal e pobreza vergonhosa. Segundo o IBGE, cerca de 37,8 % da força de trabalho estava na informalidade no trimestre de abril a junho de 2025, embora o rendimento médio mensal real tivesse atingido R$ 3.477 — o maior valor já registrado na série histórica iniciada em 2012.

Lula 3 tenta reconstruir o tecido social rasgado: ampliou o Bolsa Família, lançou o programa Desenrola Brasil, valorizou novamente o salário mínimo e iniciou a tributação de grandes fortunas no exterior.

Mas a financeirização global e o poder do agronegócio são forças poderosíssimas — nenhum governo, sozinho, as enfrenta impunemente.

O desafio não é apenas econômico: é civilizatório.

A desigualdade no Brasil não é destino — é projeto.

É a consequência direta de decisões políticas que protegem a riqueza e punem o trabalho. O país que teve a coragem de eleger um operário e uma mulher à Presidência não tem força para tributar os super-ricos.

A concentração de renda, de terras e de poder é a mãe de todas as crises — moral, social e ambiental.

Enquanto não enfrentarmos o rentismo, democratizarmos o crédito e reformarmos a tributação, seguiremos sendo o país onde poucos têm tudo e centenas de milhares não têm nem teto.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

Logo Forum