O país de Vale Tudo é mais crível que o país que temos, por Washington Araújo
Sob o disfarce da ficção, Vale Tudo exibe o país real: um lugar onde a mentira é arte, o egoísmo é lei e a maldade, aplauso garantido.
Há ficções que apenas distraem — “Vale Tudo”, não. Desde sua estreia, a nova versão da novela da Rede Globo tornou-se uma espécie de radiografia do Brasil contemporâneo, uma lente cruel que aproxima nossas contradições e exibe, sem pudor, a erosão dos valores mais simples.
O penúltimo episódio, exibido nesta quinta-feira, 16 de outubro de 2025, deixou uma sensação incômoda no ar: a de que, quando o mal vence na ficção, ele apenas confirma o que já triunfou fora dela.
Durante meses, a trama conduziu milhões de brasileiros por um labirinto moral em que as paredes são feitas de mentira e o teto, de ambição.
Ali, trair é inteligência emocional; corromper, uma forma de ascensão; falsificar, um talento disfarçado de esperteza.
A ética surge apenas como uma lembrança incômoda, como algo fora de moda. O país se viu inteiro nesse roteiro — e o mais perturbador foi a naturalidade com que aceitou reconhecer-se.
Como pai, há uma exaustão quase física diante da tarefa de seguir educando filhos e netos num tempo em que o mal virou entretenimento.
Fala-se em valores, mas a sociedade vibra com a vitória do vilão, com o riso sarcástico do corrupto que escapa, com a frieza de quem pisa sem culpa.
A ficção, que deveria inspirar, está ensinando a sobreviver sem alma, como pigmeu moral.
Os roteiristas foram cirúrgicos ao capturar o veneno social que circula pelas veias do país.
A empresária que encomenda crimes, a filha que renega o avô, e a própria mãe; o marido que arma flagrantes; a executiva que falsifica exames médicos — todos praticam o mesmo credo: o de que tudo tem preço e nada tem valor.
Em “Vale Tudo”, novela que já vai tarde, o mal é eficiente, sedutor e, o mais grave, recompensado.
Como professor há décadas nas universidades, foi mais fácil reconhecer rostos e comportamentos familiares: jovens inteligentes, cheios de potencial, mas com bússolas éticas desnorteadas, danificadas.
O pragmatismo tomou o lugar da reflexão, e a pressa substituiu o propósito. Há brilho no olhar, mas nenhum horizonte. O que antes era busca por sentido virou desejo de visibilidade — e o resultado disso é uma juventude treinada para vencer a qualquer custo, mas não para ser.
Em “Vale Tudo”, o mesmo se repete: todos correm, competem, se fingem de bons, vendem uma imagem, traem um ideal. A protagonista — símbolo do eterno complexo de vira-lata nacional, embora estando no topo da pirâmide na companhia de 0,01% da população brasileira — representa a caricatura de um país que busca status, mesmo à custa da própria dignidade.
A morte de Odete Roitman, ao invés de comoção, gerou júbilo e escárnio entre os personagens e, em certa medida, entre os próprios espectadores. Ali estava a prova de que o egoísmo venceu: nem a morte escapa da zombaria. Ninguém sabe se a bala encontrou o seu destino nela.
A novela expõe a pedagogia da perversão: o aprendizado de que o mal é mais interessante que o bem, e o crime, mais envolvente que a virtude.
E nós, espectadores, seguimos aprendendo — atentos, fascinados, cúmplices. Em mais de 96% dos capítulos, a trama oferece um curso intensivo sobre como sepultar a honestidade, neutralizar a empatia, silenciar a consciência.
O pouco que resta de redenção chega tarde, como uma nota dissonante num concerto de cinismo.
Como psicanalista, há um diagnóstico quase inevitável: vivemos uma epidemia de hedonismo e superficialidade.
A sociedade transformou-se em um palco de personalidades ansiosas, competitivas, desumanizadas. Todos parecem ser nossos de “dessemelhantes”.
Cresce o número de pessoas neuróticas, aprisionadas no medo de fracassar e na ânsia de aparentar sucesso.
“Vale Tudo” apenas dramatiza o que já é cotidiano: a transformação da dor em espetáculo e da falsidade em virtude.
As redes sociais ampliam esse deserto moral. Ali, a encenação se multiplica. Há falsos amores, falsos ativismos, falsos exemplos.
O que importa é parecer — não ser.
O culto ao ego substituiu a solidariedade; a vaidade tomou o lugar da empatia. No universo digital, cada um se torna roteirista da própria farsa.
Pior: A mesma lógica que move “Vale Tudo” move o Instagram, o TikTok, o X: todos encenam uma vida que não têm, por medo de enfrentar a que possuem.
Como jornalista, me chama atenção o espaço que a mídia — grande, média e pequena, analógica ou digital — dedicou durante meses a exaltar os “golpes geniais” da novela. Revistas, portais e programas de entretenimento celebraram o talento dos vilões, o charme dos trapaceiros, o glamour da maldade.
Enquanto isso, temas cruciais do país — desigualdade, fome, violência, educação — desapareceram das manchetes. Os crimes da ficção ocuparam o lugar dos crimes reais. Posso afirmar que nos dias que correm o que realmente é notícia é exatamente o que NÃO é noticiado.
A direção da novela é impecável, o elenco, talentoso; mas o impacto ético é devastador.
“Vale Tudo” mostra que a corrupção é democrática: o pobre e o rico, o político e o vendedor ambulante, todos aprendem a trapacear dentro de suas possibilidades. O lema é simples: quem não trapaceia, não sobrevive.
E essa lógica, repetida diariamente, vai se infiltrando nas salas de aula, nas empresas, nas famílias.
Há cenas inesquecíveis em que as personagens humilham umas às outras com um charme quase elegante, transformando a crueldade em estilo de vida. A novela romantizou o abuso emocional, estetizou a hipocrisia, tornou a traição um gesto de empoderamento.
E nós, espectadores, fomos sendo anestesiados, capítulo a capítulo.
Em meio a tanta sedução visual, o país real se esvaiu.
Os jovens aprenderam que os fins justificam os memes, e que a honestidade é um fardo pesado demais para se carregar.
Nessa roleta russa da insanidade as crianças crescem acreditando que a maldade é divertida e a bondade, tola. Isso porque as famílias, exaustas e distraídas, deixam a televisão ou o celular educarem em seu lugar.
Quando se observa essa engrenagem como pai, professor, psicanalista e jornalista, a conclusão é amarga: “Vale Tudo” não é apenas uma novela — é uma radiografia de um país em colapso moral. Cada capítulo foi um desnudamento daquilo que fingimos não ser, mas somos.
E sabem o que é mais doloroso? Perceber que a audiência vibra com isso.
O último capítulo está prestes a ir ao ar, e talvez os vilões sejam punidos, as vítimas redimidas, o amor triunfe no final.
Mas nada disso compensará o estrago. O mal já venceu — não apenas na ficção, mas no modo como o público aprendeu a desejar o que ela ensina.
O que se assiste, noite após noite, é a celebração da maldade como entretenimento. O país que sorri diante disso já perdeu parte da alma.
E talvez o alerta mais urgente seja este: nossas crianças estão observando — atentas, silenciosas, curiosas — aprendendo, sem saber, que no Brasil de hoje ainda vale tudo.