Darcy Ribeiro

Darcy faria falta em qualquer época; nesta, faz falta dobrada

Darcy Ribeiro antecipou que educação definiria o destino nacional; sua ausência mostra um país reduzido a improviso, intolerância e desigualdade institucionalizada contra milhões.

Escrito en Opinião el
Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.
Darcy faria falta em qualquer época; nesta, faz falta dobrada
Darcy Ribeiro. Celio Azevedo/Senado Federal

Convivi longos anos no Senado Federal com Darcy Ribeiro, à época em que era senador da República. Sempre muito culto, apaixonado pelas próprias ideias e atento às dos outros, espontâneo ao emitir opiniões, passional quando ouvia o Hino Nacional ou, no exterior, via a bandeira brasileira. Era desses homens que não cabem em um só ofício: antropólogo, educador, romancista, político. Darcy não se limitava a observar o Brasil; buscava reinventá-lo. Hoje, quando a mediocridade ocupa cadeiras de poder e a intolerância corrói a vida pública, a falta que ele nos faz é a falta de projeto, de grandeza, de coragem.

Darcy tinha uma visão orgânica da nação. Não via os brasileiros como somatória de indivíduos dispersos, mas como povo em construção, obra inconclusa. Daí sua obsessão por educação, pela escola como instrumento de transformação e como trincheira contra a desigualdade. Foi ele quem disse, com a contundência que só os visionários possuem: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Denunciava, com clareza, que manter o povo na ignorância sempre foi estratégia de poder. Meio século depois, essa denúncia permanece atualíssima, como se escrita ontem.

Não era apenas pensador. Foi homem de ação. Esteve ao lado de Brizola na fundação dos CIEPs, escolas integrais que poderiam ter revolucionado a educação brasileira. Imaginava crianças tendo acesso não apenas a aulas, mas a alimentação digna, cultura, esporte, cidadania. O projeto foi interrompido, ridicularizado, desmontado. Hoje, quando ainda discutimos merenda escolar e professores mal remunerados, percebemos a dimensão de sua ausência: Darcy ofereceu caminhos, mas preferimos os atalhos da improvisação e do descaso.

Havia nele também a paixão pelo Brasil profundo. Seus estudos sobre povos indígenas não foram distantes ou burocráticos: foram mergulhos existenciais, convívio, respeito. Darcy não apenas escreveu sobre os indígenas, mas aprendeu com eles, defendeu sua dignidade, denunciou sua perseguição. Foi perseguido por isso, exilado, mas não recuou. Sua obra O Povo Brasileiro é talvez o mais completo retrato de quem somos: um país mestiço, complexo, criativo, capaz de gerar beleza e violência na mesma intensidade.

E como romancista, Darcy também se rebelou contra as fronteiras acadêmicas. Quis contar histórias, dar voz a personagens, ampliar a imaginação nacional. Entendia que a literatura, assim como a antropologia, também podia ser ferramenta de emancipação. Darcy escrevia como quem luta. Pensava como quem ama. Agia como quem sonha.

A falta que ele faz não é apenas a ausência de um intelectual. É a ausência de um horizonte. O Brasil de hoje, fragmentado por ódios fabricados e fake news, carece de alguém que lembre que somos um só povo, que não há futuro sem educação, que não há nação sem dignidade.

Darcy faria falta em qualquer época; nesta, faz falta dobrada.

Enquanto não surgem outros Darcys, resta-nos reler suas obras, recuperar seus projetos, assumir sua coragem. Porque, sem isso, seremos apenas um país à deriva, construindo cada dia menos, destruindo cada dia mais.

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