Crime e Prescrição, por Washington Araújo
Se Dostoievski tivesse vivido no Brasil, não teria escrito “Crime e Castigo”, mas “Crime e Prescrição”
Se Dostoievski tivesse nascido no Brasil, Raskólnikov não seria atormentado pela culpa — apenas aguardaria o prazo da prescrição. O sangue seco na cena do crime teria se dissolvido na lentidão dos tribunais, convertido em processo arquivado, transformado em manchete esquecida. Aqui, o castigo não é o desfecho: é a ausência dele. A culpa, quando surge, não queima, apenas sussurra até perder o timbre.
No Brasil, o crime não se conclui, apenas muda de foro. É uma coreografia bem ensaiada entre o poder e a paciência, uma dança lenta em que cada passo processual serve para adiar o fim da música. As leis, com seus prazos generosos e labirintos de recursos, são o tapete sobre o qual os culpados desfilam com elegância. A prescrição não é exceção — é um estilo de vida, uma arte nacional de fazer o tempo servir à conveniência.
Se Dostoievski tivesse olhado esse país, talvez escrevesse não sobre o tormento da consciência, mas sobre o requinte da justificativa. Raskólnikov seria um deputado em busca de foro privilegiado; Sônia, uma consultora de imagem ensinando-o a parecer arrependido na televisão. A tragédia daria lugar ao cinismo, e o arrependimento à assessoria de imprensa.
Essa reflexão, contudo, não é uma jabuticaba brasileira. O fenômeno da impunidade vestida de formalidade jurídica também se alastra por democracias antigas e novas, de diferentes continentes, onde o poder aprendeu a disfarçar o erro sob o manto elegante da legalidade.
O Brasil é um terreno onde o crime floresce em vasos de impunidade. Aqui, o erro não pesa — flutua. Os corruptos trocam de partidos como de ternos, e a vergonha é apenas um intervalo breve entre duas entrevistas. A punição se tornou um rumor e a ética, um adereço de discurso. Somos uma civilização que aprendeu a transformar delitos em narrativa de sucesso e aplaudir quem consegue trapacear com sofisticação.
No coração dessa ironia está o que Dostoievski melhor compreendeu: o ser humano é um abismo que raciocina. O escritor russo não descrevia personagens — dissecava consciências. Seus protagonistas falavam como quem se interroga diante do espelho do próprio erro. Criador de diálogos interiores que pareciam cavernas, Dostoievski fez da dúvida uma forma de revelação. Sua genialidade estava em capturar o instante em que o pensamento se torna culpa e a culpa, pensamento — algo que nem o cinema conseguiu reproduzir inteiramente.
Foi ele quem inaugurou a literatura como autópsia moral. De Kafka a Sartre, de Camus a Clarice Lispector, todos beberam desse mesmo subterrâneo: o de olhar o homem por dentro, onde o crime não é apenas ato, mas sintoma.
Mas no Brasil essa escavação seria inútil. Aqui, o que há não é introspecção, é anestesia. A consciência foi substituída por jurisprudência. Os dilemas morais, por pareceres técnicos. O país se comporta como um corpo que aprendeu a conviver com a febre sem jamais procurar a causa da doença. A impunidade nos habita como uma substância invisível — uma espécie de morfina cívica que torna suportável o intolerável.
E talvez fosse essa a metáfora central de “Crime e Prescrição”: o Brasil como um organismo que não cicatriza, mas se acostuma com a ferida. Um país que cobre as marcas com novas camadas de maquiagem institucional, até o rosto se tornar irreconhecível.
Enquanto isso, seguimos colecionando escândalos como quem coleciona selos — com paciência, com método, com certo orgulho da raridade de cada caso.
No fim, Dostoievski entenderia: o verdadeiro castigo brasileiro é não sentir mais nada. Nem indignação, nem vergonha, nem espanto. Aqui, o crime amadurece até virar costume. E quando o costume se instala, a justiça deixa de ser esperança para virar rumor de outro século.
No Brasil, a tragédia não termina em redenção — termina em prazo. E o que prescreve, antes da pena, é o caráter coletivo.