Bares Brasil afora VII – Santana do Cariri etc. - Por Mouzar Benedito
Chegou a vez de Conservatória, Santana do Cariri, Belém e Ribeirão Preto. Como os anteriores, são causos que já andei publicando por aí
Conservatória (RJ)
Costumo dizer que nova-resendenses rendem. Não somos tantos, mas onde vamos encontramos algum. Uma amiga acostumada a viajar comigo pelo Brasil me dizia: “Se a gente precisasse se esconder, estava frito”, pois muitas vezes estávamos num bar, por exemplo, e logo aparecia alguém me cumprimentando. Era de Nova Resende. Ela me perguntou um dia se em Cuba eu havia encontrado algum.
— Bem... — falei. — Nova-resendense mesmo, não. Mas uma vez estava na Bodeguita, em Havana, bebendo mojito e conversando com uma brasileira, ela perguntou de onde eu era, respondi que era de um lugar que ela nem tinha ouvido falar e, depois de alguma insistência dela, contei que era de Nova Resende. Ela deu uma gargalhada e falou: “Vou muito lá. Um amigo italiano tem um sítio perto da cidade...”. Deu o nome do cara, era verdade.
Por isso, de vez em quando fico pensando se vou encontrar algum conterrâneo em lugares improváveis. Uma dessas vezes foi em Conservatória, povoado do município de Valença, na região serrana do Rio de Janeiro. É considerada a “capital da seresta” do estado. Fui passar uns dias lá, com a namorada, um casal de amigos e um recém-chegado do Rio Grande do Norte, o Gonzaguinha.
No sábado à noite, fomos ao Museu da Seresta. Na verdade, duas saletas com um montão de fotos coladas nas paredes, onde um monte de gente da terceira idade se reúne para cantar músicas antigas e algumas composições próprias.
Podia ser um ambiente agradável, mas os frequentadores parecem (ou pelo menos pareciam) não se divertir nem um pouquinho. Em primeiro lugar, não cabia muita gente. Uma boa parte ficava de pé, na calçada. E todos ficavam muito sérios ouvindo cada um que ia lá na frente cantar, às vezes cantando juntos também, mas sem nenhum sorriso. Parecia uma obrigação, manter a tradição da seresta, e não um prazer, uma atividade agradável, pois o pessoal era muito carrancudo.
A Célia não aguentou ficar muito tempo ali, do lado de fora, vendo e ouvindo os velhinhos cantarem como se estivessem numa cerimônia fúnebre. Foi nos esperar no bar. Gonzaguinha, que se diverte com qualquer coisa, se divertia. Achava tudo muito interessante. A certa altura, um homem ocupou o centro da sala e falou sério:
— Esta música, vou oferecer a Maria do Carmo.
Uma mulher beirando os 80 anos, do lado de fora, deu risinhos, enquanto outras falavam pra ela:
— É pra você, vai lá...
Ela só sorria, mas não saía do lugar. Parece que nesses casos era obrigatória a permanência da homenageada em frente ao cantor, porque ele não iniciava. As amigas tentavam fazer a mulher entrar na sala, mas ela não se mexia. Aí o homem que iria cantar falou mais uma vez, em tom mais sério e mais alto:
— Esta música, eu vou oferecer a Maria do Carmo.
Ela sorriu mais uma vez e as amigas a incentivaram a ir para o centro da sala. Então, subiu vagarosamente o degrauzinho de uns quinze centímetros que dava acesso à sala, virou-se para trás e falou para as amigas, com ar vaidoso e de enfado:
— Ah... Este degrau me mata!
Não aguentamos. Gonzaga e eu saímos dando gargalhadas, para horror dos que acompanhavam tudo com ar solene.
Na noite seguinte, a Célia e eu estávamos bebendo cerveja numa mesa da calçada de um bar, por volta de 10h da noite, e vi do outro lado da rua um sujeito com um violão nas costas, andando com uma moça. Ele me lembrava um conhecido, e falei pra Célia:
— Aquele cara parece o Juquinha, lá de Nova Resende.
Olhei mais um pouco e falei: vou gritar o nome dele. Se não for o Juquinha, não vai ligar. E gritei:
— Ô, Juquinha.
Ele se virou pra nós, veio caminhando e falou:
— Eu estava falando com a Fulana (não me lembro o nome dela): “Aquele cara parece o Mouzar, lá de Nova Resende”.
Santana do Cariri (CE)
A cidade tem hoje um museu importante, o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, nome dado em homenagem ao seu fundador, primo de um amigo, com quem frequentei a cidade quando o próprio Plácido estudava para ser padre em Roma. Desistiu da batina, voltou para sua terra e tomou uma atitude importantíssima, para impedir que continuasse a dilapidação de um patrimônio natural riquíssimo.
O Cariri foi um mar interior em eras geológicas distantes e restaram muitos fósseis. Mas muitos mesmo! Na primeira vez que fui a Santana do Cariri, em 1969 ou 70, qualquer pedra arredondada que a gente pegasse e batesse com um martelo na parte mais estreita, ela se quebrava e havia dentro algum fóssil, principalmente de peixes. Não havia consciência nenhuma do valor paleontológico disso. Se eu quisesse (e tivesse como, pois viajava de carona, com uma mochila e não aguentaria carregar nem um fóssil desses), poderia trazer um monte, de graça. Algumas pessoas enchiam caminhões com essas “pedras” e traziam para vender na chamada feira hippie da Praça da República, em São Paulo. A iniciativa de Plácido Nuvens deu um fim a isso.
Bom, mas o assunto é bar e, no caso, um frequentador. Conheci num bar da praça central, nessa primeira viagem, o Leite, um sujeito que vivia folgado ali. Ele me pediu um cigarro: “Give me one cigarette, messieur”. Dei, sorrindo pela exibição linguística, misturando inglês e francês, ele acendeu, puxou uma tragada e me disse: “Esses latim eu não aprendi na escola, não, aprendi na vida”.
Ofereci uma cerveja, ele aceitou e brindou: “Tilintemos nossos copos para que permaneçamos coesos”. É meu brinde preferido até hoje, junto com outro de um também cearense, o anarquista Ribamar, meu amigo: “Saúde... educação e moradia!”. Sei que toda hora que via o Leite o chamava para beber uma cerveja, só para ouvir o brinde.
Passado um tempo, o Leite apoiou um candidato a prefeito, em troca de uma promessa de emprego. O candidato ganhou e tinha que cumprir... Mas que emprego poderia dar ao Leite? Bom, ele flanava pela cidade inteira... Em outra viagem, um amigo que também conhecia o Leite (eu não estava junto neste momento) o viu na porta do tal bar e o chamou para beber uma cerveja. Surpresa: “Não posso, estou trabalhando”... Que trabalho era esse? Bem adequado: fiscal de fio. Tinha que andar pela cidade toda para ver se não roubaram a fiação elétrica, coisa inédita. Na época, ninguém sequer pensava em roubar fio da rede urbana. Lá, então...
Ele ficou olhando pro alto, para todos os lados, depois falou orgulhoso: “Na minha gestão nunca houve um roubo”. E concluiu: “Já trabalhei, agora aceito a cerveja”.
Belém (PA)
Peguei um avião que fez escalas no Rio, em Salvador, Recife, Fortaleza, Teresina e São Luís. Foi uma viagem que durou umas dez horas — e não tinha nada de caos em aeroportos, a demora foi por causa do excesso de escalas.
Naqueles tempos os serviços de bordo não eram essa miséria de hoje, de darem um sanduichinho vagabundo e, de álcool, uma cerveja ruim e praticamente sem gelo. Comia-se bem nos aviões, e bebia-se muito bem. E muito. Eu pensava em, chegando em Belém, ir beber mais umas no Bar do Parque, na praça em frente ao Teatro da Paz. Ia encontrar uns amigos jornalistas paraenses lá, como já havia acontecido em viagens anteriores.
Sem ter o que fazer, depois de ler os jornais, fui bebendo, bebendo... Resultado: cheguei lá bem calibrado, às quatro e meia da tarde. Peguei um táxi e fui direto pro hotel. Fiz a ficha rapidamente, entrei no quarto e caí na cama para um cochilo antes de ir pro bar. Mas tinha bebido demais e estava desmemoriado.
Menos de uma hora depois, acordei. Estava começando a escurecer. Não me lembrava de nada, não sabia onde estava. Olhei o quarto e só dava pra ver que estava num hotel. Resolvi sair à janela para tentar reconhecer o lugar, mas o quarto era de fundo, a janela dava para os fundos de outro prédio. Olhei o telefone na mesinha de cabeceira, pensei em ligar para a portaria e perguntar onde eu estava, mas achei que ia pegar mal.
Deitei de novo, não para dormir, e fiquei tentando me lembrar de onde eu estava no dia anterior e o que havia feito nesse dia. Demorei, mas, já achando que tinha pirado, me lembrei. Saí e fui encontrar uns jornalistas no Bar do Parque, em frente ao Teatro da Paz, para tomar umas cerpinhas (Cerpa era uma cerveja ótima na época, e a de meia garrafa, melhor ainda) e conversar. Estávamos em plena ditadura e os jornalistas me contaram que o prefeito — que era nomeado, não havia eleições para o cargo nas capitais — estava acabando com a cidade. Nem os antigos coretos escapavam. Eram muitos, belíssimos, mas estavam desaparecendo de Belém e reaparecendo em outros lugares. Até num sítio de um militar em Petrópolis, estado do Rio, foi visto um daqueles coretos históricos. Na época, eu colaborava no Pasquim e mandava matérias pelo correio. Este papo no Bar do Parque, regado a cervejas, rendeu uma nota na seção “Dicas”, sobre mais uma façanha dos militares, se apropriando dos coretos de Belém.
Ribeirão Preto (SP)
Ir a Roma e não ver o papa, pra mim, não tem nada demais. Eu não iria. Mas fiz coisa “pior”: já fui a Paulo Afonso, na Bahia, e não vi a cachoeira. Tinha bebido muita cachaça e quando pensava em ir lá, me apareceu uma carona para Salvador.
Por que falo disso? Ir a Ribeirão Preto e não dar uma chegada ao Pinguim é heresia, para muita gente. A choperia é lendária, diziam até que uma fábrica da Antarctica ali perto tinha um encanamento subterrâneo que levava cerveja direto pra lá.
Ponto de encontro de muitos amigos, o Pinguim fica na beira de uma praça onde acontecia uma das maiores feiras literárias a céu aberto do mundo, e ao lado de um teatro onde aconteciam debates nessa feira. Participei bastante e, lógico, frequentei o Pinguim.
A feira, anual, tinha uma prática interessante para os escritores: cada um tinha uma madrinha, que o levava não só aos eventos, mas a tudo quanto é lugar, inclusive bares.
As palestras no teatro costumavam ter a duração de uma hora. Terminava uma, começava outra imediatamente. Uma vez, meu bate-papo foi às 7h da noite, e quando saía para ir ao Pinguim, entrava para palestrar o navegador Amyr Klink. Eu tinha lido e gostado de um livro dele, “Cem dias entre o céu e o mar”.
Ocupei uma mesa no bar e pedi um Underberg para abrir os serviços. Não tinha. Não trabalhavam com essa bebida lá. Pedi então um Steinhaeger para preceder o chope, reclamando ao garçom. E fui repetindo as bebidas.
Uma hora depois, Amyr Klink entrou no bar com a madrinha, e não havia mesas vazias. A moça me conhecia e perguntou se podiam sentar comigo. Claro que podiam. Amyr Klink perguntou o que eu estava bebendo e respondi: “Steinhaeger... Esta porcaria de boteco não tem Underberg, que era o que eu queria”. Chamar o Pinguim de “porcaria de boteco”, que heresia... Ele fez cara de espanto: “Como?! Não tem Underberg? Era o que eu ia pedir”.
Parece que os bebedores de Underberg – uma bebida amarga de origem alemã, mas fabricada no Brasil com qualidade melhor que a original –, formam uma confraria. Amizade imediata. Amyr Klink e eu brindamos sem Underberg, mas prometendo encontro num “bar melhor” – boteco mesmo, bem menos qualificado que o Pinguim, mas que tivesse Underberg.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.