OPINIÃO

Se homens engravidassem, o aborto seria um chiclete sabor morango - Por Thaís Cremasco

Enquanto mulheres são criminalizadas, os verdadeiros abortos de crianças vivas seguem impunes: os homens que não cuidam, não sustentam e abandonam seus filhos.

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Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, é representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça.
Se homens engravidassem, o aborto seria um chiclete sabor morango - Por Thaís Cremasco
Entidades fazem manifestação pela legalização do aborto em frente ao MASP, em São Paulo, em 2024.. Paulo Pinto/Agência Brasil

A hipocrisia da moral masculina

O recente voto do ministro Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal, a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, trouxe à tona uma ferida antiga do Brasil: a moral seletiva que recai sobre o corpo das mulheres.

Homens, que jamais vão engravidar, sentir enjoo, parir ou enfrentar o medo de uma gestação indesejada, seguem opinando com autoridade sobre um processo biológico e social que não lhes pertence.

Se homens engravidassem, o aborto seria um chiclete sabor morango, vendido em qualquer esquina, com selo de aprovação familiar.

A criminalização, afinal, nunca foi sobre “defender a vida”.

Foi, e ainda é, sobre controlar a vida das mulheres.

O aborto que o Brasil não vê: o abandono paterno

Enquanto o Estado quer prender mulheres por interromper uma gestação, milhões de homens seguem abandonando filhos nascidos, os abortos de crianças vivas, que ninguém quer discutir.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento.

Outras milhões convivem com pais que não pagam pensão, não participam da criação, não comparecem às escolas, não sustentam emocional nem financeiramente seus filhos.

Esses homens são os abortistas de corpos vivos.

Abandonam sem culpa, sem punição, sem manchetes, sem debate.

A mulher que tenta interromper uma gestação indesejada vira criminosa; o homem que abandona o filho é tratado com indiferença.

E assim o patriarcado segue em sua lógica perversa: o corpo feminino é território de controle, o corpo masculino é território de isenção.

O direito penal como instrumento de desigualdade

O voto de Barroso, proferido em seu último dia como ministro, resgatou o óbvio que muitos fingem não ver: o aborto é uma questão de saúde pública, não de polícia.

De acordo com o Ministério da Saúde, mais de 250 mil mulheres são internadas por complicações de abortos inseguros a cada ano no Brasil. A cada dois dias, uma mulher morre em decorrência disso.

E não são as mulheres ricas que morrem. São as pobres, negras, periféricas, que não têm acesso a clínicas seguras ou a viagens discretas para o exterior.

A criminalização do aborto nunca impediu que ele existisse, apenas definiu quem pode fazê-lo com segurança e quem vai morrer tentando.

É o uso do direito penal como ferramenta de desigualdade de classe, raça e gênero.

Se a preocupação é com a vida, comecemos pelos homens

Se o argumento é “defender a vida”, que tal começar pelos homens?

Que tal exigir vasectomia de quem não quer filhos, em vez de controlar o útero de quem não quer ser mãe?

Que tal criminalizar o abandono paterno com o mesmo rigor com que se criminaliza o aborto?

Mas não: o moralismo é seletivo.

Ele mira o ventre feminino, nunca o esperma irresponsável.

Porque, para o patriarcado, a mulher é a única responsável por prevenir, gestar, parir, cuidar e sustentar, enquanto o homem é aplaudido por “ajudar”.

O STF e a coragem de mudar paradigmas

Ao votar pela descriminalização até a 12ª semana, Barroso afirmou que “não se trata de ser a favor do aborto, mas de decidir se o Estado deve mandar prender uma mulher por não querer ou não poder levar adiante uma gestação”.

Foi um voto de coragem ética e humanista, que rompeu com séculos de hipocrisia institucional.

Mas, em um país ainda dominado por visões moralistas e conservadoras, o voto ficou vencido.

A maioria do Supremo recuou, mantendo a criminalização e empurrando o debate para o futuro.

Ainda assim, o voto de Barroso ficará registrado como um marco civilizatório: o momento em que um ministro ousou dizer o que o Brasil precisa ouvir, que autonomia feminina é um direito fundamental.

A liberdade que ainda nos falta

Enquanto o corpo feminino continuar sendo um campo de batalha entre Estado, religião e moral, não haverá igualdade plena.

A luta pelo direito ao aborto não é uma luta pela morte, mas pela vida digna, consciente e livre.

É o direito de não ser forçada a parir, o direito de não morrer em uma clínica clandestina, o direito de decidir sobre o próprio destino.

Descriminalizar o aborto não é ser a favor ou contra ele.

É reconhecer que essa decisão não cabe ao Estado, nem à Igreja, nem aos homens, cabe à mulher.

E talvez, quando o Brasil finalmente entender isso, poderemos dizer que a vida, toda ela, estará sendo verdadeiramente protegida.

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