Denúncia

Justiça não reconhece violência patrimonial contra idosa – Por André Lobão

Decisão do Juizado Especial Cível do Rio de Janeiro não considera vulnerabilidade de idosa de 82 anos por ter tomado golpe da falsa central telefônica de atendimento

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Jornalista de formação, especialista em Mídias Digitais, escritor e videomaker. Atualmente é jornalista do Sindipetro-RJ.
Justiça não reconhece violência patrimonial contra idosa – Por André Lobão
Imagem Ilustrativa. Tomaz Silva/Agência Brasil

Aposentada que mora no Rio, e nunca foi a São Paulo, teve seu cartão de crédito clonado, usado em compras na capital paulista, mas a administradora do cartão Bradesco não reconhece golpe, cobrando mais de R$ 6 mil. Juíza, apesar de reconhecer que a vítima foi enganada pelo golpe da falsa central de atendimento, não acatou pedido para cancelamento de compras indevidas e pagamento de dano moral.

Justiça disse que responsabilidade é da vítima do golpe

Sem que o Cartão Bradesco considerasse sua situação, a aposentada Celeste Almeida de Souza, de 82 anos, moradora da Gávea, no Rio de Janeiro, entrou na Justiça Especial Cível do Rio de Janeiro, pedindo a suspensão da cobrança e pagamento por dano moral, já que seu nome foi negativado nos serviços de proteção ao crédito ao consumidor. Porém, teve seu pedido negado, conforme sentença publicada nesta terça-feira (21/10). A juíza do caso de Celeste, Ingrid Charpinel Reis, considerou que o Cartão Bradesco não tem responsabilidade nenhuma no ocorrido e proferiu:

“Quanto às compras questionadas, não há prova de se tratar de compras fora do perfil, conforme se extrai do valor das únicas duas faturas apresentadas pelo réu, já que a autora não trouxe faturas anteriores. Mero fato de constar estabelecimentos em São Paulo, como Drogasil, Casas Bahia, não significa que a compra foi feita em São Paulo, e sim que este é o local de cadastro. Além disso, conforme narrativa do boletim de ocorrência anexado, o interlocutor orientou a autora a como proceder em carta ao banco, e a autora confessa que forneceu chave de segurança e inclusive senha pessoal. O vazamento de dados não se presume, não havendo nos autos qualquer prova de que o banco teria permitido o acesso de terceiros a dados de sua correntista. Não se verifica falha no serviço prestado pelo réu. A autora foi vítima do golpe da falsa central de atendimento ou do falso funcionário. Na hipótese, houve fato de terceiro e culpa exclusiva do consumidor, o que rompe o nexo de causalidade e exclui a responsabilidade do réu”, diz a sentença, assinada pela Juíza Ingrid, do 6ª Juizado Especial Cível da Comarca da Lagoa – RJ.

A pergunta a ser feita é saber como o estelionatário, autor do golpe, teve acesso aos dados pessoais de Celeste, dando informações sobre número de agência e conta corrente, se isso é de responsabilidade do banco? E o pior de toda essa história é que a juíza não considerou em nenhum momento a situação de vulnerabilidade de uma idosa de 82 anos, que foi induzida em um golpe que hoje é considerado tão recorrente e comum.

A vítima teve seu cartão clonado no dia 6/5, sendo este usado pelo golpista em três compras em São Paulo. De imediato, ela acionou o Banco Bradesco onde foi orientada por seu gerente a fazer um boletim de ocorrência na 15ª Delegacia de Polícia Civil da Gávea, para efetivar a contestação junto à administradora de cartões Bradesco.

De posse do registro policial, com a descrição do golpe ao qual foi vítima, documentos e carta de contestação, ela entrou em contato com o cartão a partir de 7/5, quando teve início uma verdadeira saga para tentar resolver o seu problema.

A dificuldade em manusear ferramentas digitais

A princípio, foi informada por uma atendente, através do serviço do cartão Bradesco, de que deveria enviar os arquivos digitalizados para o e-mail [email protected]. Com a ajuda de uma vizinha fez o envio, já que não possui domínio das ferramentas digitais. O problema é que, ao tentar obter um retorno sobre sua contestação, a aposentada ouvia como resposta que os documentos não tinham chegado. No dia 31/5, seu filho André entrou no circuito para ajudá-la, tendo também enviado o e-mail com os documentos digitalizados. O fato é que, após diversas ligações, com a geração de vários protocolos de atendimento, somente no dia 5/6, seu filho recebeu a informação de que os arquivos deveriam ser enviados de forma separada para que a contestação fosse aberta oficialmente pela administradora de cartões.

André, verificando que o caso da contestação não progredia, abriu uma reclamação no site de reputação online Reclame Aqui, uma plataforma privada que atua como intermediária na comunicação entre consumidores e empresas. Além disso, ele também abriu outra reclamação no serviço Consumidor.gov.br, uma plataforma pública operada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) para tentar agilizar a situação.

Bradesco reconheceu que compras foram realizadas em São Paulo

De imediato, o cartão Bradesco respondeu ambas as demandas dizendo que o caso estava sendo analisado. Ao mesmo tempo, uma atendente da administradora informou ao filho de Celeste que as compras foram realizadas em São Paulo em lojas físicas, configurando assim a clonagem do cartão da aposentada, que mora no Rio de Janeiro.

Em 10/6, o banco enviou o seguinte retorno ao Reclame Aqui: “Após o recebimento das evidências, o processo de contestação será analisado. Caso o parecer seja positivo, um crédito será lançado em sua fatura dentro de 2 dias úteis. Se for necessária documentação adicional, o departamento responsável entrará em contato. A despesa passará por uma análise detalhada e, caso seja identificada participação, o valor poderá ser reincluído. O processo de contestação foi iniciado, não temos um prazo definido pois estamos iniciando o processo neste momento. Poderá acompanhar a contestação através dos canais digitais ou central de atendimento”, informou o cartão Bradesco.

No mesmo dia, André recebeu no WhatsApp a seguinte mensagem da administradora do cartão: “Informamos que as manifestações abertas no canal CONSUMIDOR.GOV no protocolo 340184859 e canal RECLAME AQUI no protocolo 340196172 foram atendidas e finalizadas. Atenciosamente Bradesco Cartões”. Em tese, a resposta deixava evidente que a contestação teria sido aceita, mas não foi isso que aconteceu.

Celeste, então, verificou que o cartão Bradesco realizou a princípio o estorno em sua fatura, e no dia 26/6, entrou em contato novamente com o serviço de atendimento do cartão, quando foi informada que sua contestação havia sido recusada.

Como foi o golpe

Celeste, no boletim policial, conta que no mesmo dia do golpe uma pessoa entrou em contato telefônico com ela, apresentando-se como seu gerente da agência Bradesco, onde recebe sua aposentadoria, se identificando como André Oliveira. “Ele me ligou fazendo diversas perguntas, obtendo todos os meus dados, me induzindo a responder de forma positiva uma confirmação de compra enviada para o meu WhatsApp. Fui à agência e lá me informaram que não existia nenhum gerente com esse nome. Eu gostaria de uma solução para o caso, não efetivei essas compras, não possuo renda para pagar esse montante”.

Após o telefonema do golpista, Celeste recebeu por WhatsApp uma confirmação de uma compra de R$ 1.299,98, em uma loja chamada 111 imóveis. Atordoada com a ligação do falso gerente, acabou por confirmar a transação. As outras compras foram realizadas na Casas Bahia e na Drogasil, com as compras sendo parceladas em 10 e 3 vezes, respectivamente.

O detalhe é que Celeste possuía um limite no cartão de crédito de apenas R$ 1.500,00. O golpista, possivelmente o falso gerente, aumentou limite do cartão Bradesco para R$ 7 mil.

Dados da Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor (ADDP) estimam que um em cada quatro brasileiros sofreu alguma tentativa de golpe no ano passado.

Foram cerca de 5 milhões de golpes praticados em 2024, o que representa crescimento entre 35% e 45% em relação ao ano anterior. Estatísticas oficiais demonstram que 1 em cada 4 brasileiros sofreu alguma tentativa de golpe e cerca de metade dessas pessoas acabou se tornando vítima.

Entre janeiro e setembro de 2024, o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania registrou mais de 72 mil casos de violação patrimonial denunciados no serviço “Disque 100”, sendo metade contra pessoas idosas, como no caso de Celeste.

Pelas leis do Brasil, golpes financeiros contra idosos são caracterizados como violência patrimonial, o que não foi reconhecido pela juíza.

Vítima também sofreu descontos indevidos na fraude do INSS

Além deste golpe, a aposentada também é uma das milhões de vítimas do golpe no INSS. Celeste teve descontos em folha em seus proventos em 2024, sem seu consentimento, com descontos mensais de pouco mais de R$ 40, durante cinco meses que já foram restituídos.

Além disso, ela, durante outros seis meses em 2023, sofreu descontos em sua conta corrente, de R$ 61, lançados pelo Bradesco em favor da Associação dos Bancários de Minas Gerais (ASBAMG), que até o momento não foram devolvidos, sendo os valores também cobrados através da Justiça.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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