Papagaio – Por Luis Cosme Pinto
Por que abandonamos o hábito de puxar conversa?
Olhos pretos como a noite, incandescentes pelo brilho da cidade. São os olhos de Timóteo, que até então nunca tinha visto.
Eu e Timóteo estamos sentados lado a lado no breu de um ônibus noturno. Ele pigarreia e joga a isca.
- Vai fazer o que em Bauru?
- Um teste para repórter de TV.
Repórter vive de perguntar, mas era ele e não eu, o curioso.
Por que em Bauru e não no Rio? Sabia que o carnaval aqui é muito animado? Aliás, qual teu nome? Teu irmão chama Damião? E o salário de repórter, compensa?
Timóteo não parou mais. Bauruense orgulhoso, elogiou o Noroeste, o Norusca; exaltou o melhor sanduíche da cidade – obviamente um Bauru – e me apresentou um verbo.
- Sabe o que é Batistar?
- Batistar?
- Batistar é bater perna na rua Batista de Carvalho. É o calçadão mais lindo do Oeste Paulista. Loja que não acaba mais, a imprensa não sai de lá.
O que Timóteo fez comigo, naquela noite de 1987, foi puxar conversa e eu adorei ser apresentado à cidade pelos seus comentários, mesmo que ele exagerasse nos seus dois dedos de prosa.
Em que becos sussurram os Timóteos? Por que não puxamos mais assunto com as pessoas?
Criamos expressões sobre essa mania tão brasileira: “conversa pra boi dormir”, “conversa de pescador”, “conversa mole” e o clássico: “em papo de marido e mulher ninguém mete a colher”. Porém, ouço aqui e ali que até na cama os casais falam menos. Será porque as paredes têm ouvidos?
O que houve? Falta de interesse pelo outro? Preguiça?
Aos mais jovens, vale explicar. Na praia, por exemplo, um desconhecido perguntava a alguém que nunca tinha visto na vida.
- A água tá fria?
- Dá para encarar, depois que mergulha acostuma.
- Ventinho de chuva...
- Vem mais tarde.
Podiam virar amigos ou nunca mais se ver. Falavam por falar. Sem temor. Sem timidez.
Uma das amizades mais afetuosas que testemunhei começou com uma puxada de conversa. Vila Isabel sofria com falta d’água e de energia. Minha mãe, em seu primeiro dia no edifício Silvana, perguntou a uma jovem vizinha, que brincava com a filha no balanço.
- Aqui tem blecaute? E a água, dá para todo mundo tomar banho?
- Tudo funciona bem e quando tem racionamento nos avisam antes.
Conversaram por mais de 50 anos. Fluentes como rio caudaloso, Therezinha e Lica falavam de tudo e sabiam se escutar.
Pelo telefone ou a caminho do mercado, trocavam ideias sobre a educação das crianças, a frustração de engolir a dominação masculina, a capa de “O Cruzeiro”, a passeata dos estudantes.
Por que diminuímos a conversa até quase emudecer? É a política? Medo de cair no golpe do Pix? Culpa dos influencers?
Não cabe saudosismo. Conversamos menos por que mandamos mais mensagens de texto. Porque trocamos o telefonema pelo áudio. Porque alguém descobriu que dava pra gente trabalhar mais e falar menos. Porque não largamos o celular.
Somos comunicativos, mas é preciso reconhecer que um bate-papo trivial, por mais simpático que seja, também tem limite.
A pensar na preciosidade do silêncio, volto à prosa de Timóteo, em nossa viagem de São Paulo a Bauru, naquela noite distante.
O blá, blá, blá – desculpe, Timóteo - já passara de 2 horas, minhas pálpebras desabaram e o sono me nocauteou. Cochilo de segundos, interrompido por dois dedos impacientes a cutucar minhas costelas. Os dedos de Timóteo.
- Dorme não, vamos conversar mais!
Fingi o sono de uma cordilheira e só abri olhos na rodoviária. Nunca mais vi ou ouvi Timóteo, que ao se despedir me deu um cartão com seu telefone fixo. “É para a gente botar a conversa em dia”.
“Acabou, mas continua”, da editora Cachalote, é o novo livro de Luis Cosme Pinto. Uma seleção das crônicas publicadas na Fórum e no Brasil, 247.
*Luis Cosme Pinto também é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, semifinalista do prêmio Jabuti 2024.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.