Série “O Caçador de Marajás”: o jornalismo que afaga é o mesmo que apedreja
Minissérie erra e acerta ao abordar a trajetória do controverso Collor, além de fazer uma revelação notável sobre Jair Bolsonaro
Assistir à série “O Caçador de Marajás”, sobre a trajetória de Fernando Collor de Mello, em cartaz na Globoplay, com roteiro e direção de Charly Braun, é quase como rever um pesadelo. E não porque ela seja ruim, muito ao contrário, mas principalmente por conta dos fatos horríveis e vertiginosos que nos traz de volta. É, no entanto, primordial, sobretudo aos jovens que não viveram aqueles dias.
Apesar de alguns problemas sérios aqui e ali – e já chego a eles – a série tem o mérito de rever com maestria um momento histórico recente do país que, visto hoje, trinta e tantos anos depois, parece mentira tamanha a bisonhice dos personagens principais. Alguns dos mais importantes protagonistas daqueles tempos, principalmente jornalistas, contam em detalhes o que viram e ouviram. E isto é o que mais vale.
Detalhe ridículo
Um detalhe que ultrapassa as raias do ridículo e é digno de nota é o uso de atores em alguns momentos, representando os irmãos Collor jovens pelejando, lutando caratê. Em outro, Collor presidente solitário em sua mesa, entre outras patacoadas. São imagens que criam um contraste enorme com a seriedade do que ali é tratado, uma bobagem tamanha que quase consegue tirar toda a seriedade da série.
O papel da Globo
O mais importante senão de “O Caçador de Marajás”, no entanto, é não deixar bem claro o papel da TV Globo e, justiça seja feita, de basicamente toda a grande imprensa na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Por meio de depoimentos de Ali Kamel, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e Merval Pereira, a organização como um todo faz, sim, um mea culpa.
Vale ressaltar que não se tratam de três meros funcionários. Anos depois, Kamel viria a ser o diretor-geral de jornalismo e esportes da emissora; Boni era, na ocasião, o vice-presidente de Operações da TV Globo e Merval, o diretor da sucursal de Brasília do jornal O Globo. Os três assumem na série o óbvio: a Globo ajudou Collor na edição do último debate antes da eleição. E ficam nisso.
O caso da edição do debate é histórico e criou paradigmas na própria TV Globo. Desde então, a emissora passou a adotar regras rígidas de tempo no ar em eleições para candidatos, entre outras. Quem define o que foi aquilo durante a série é o jornalista Ricardo Kotscho, responsável pela comunicação de Luiz Inácio Lula da Silva naquelas eleições: foi um programa eleitoral, em um momento decisivo e em horário nobre, quando já havia acabado o horário eleitoral.
Foi muito pior
A coisa toda, no entanto, foi muito pior e muito além da tal edição. A Globo fez campanha sistemática para o tal “caçador de marajás” durante toda a campanha e até mesmo antes dela. A emissora teve papel decisivo tanto na construção do personagem quanto a partir do momento em que a sua eleição passou a se tornar factível. É sempre bom lembrar que Collor era, com a sua família, sócio das organizações Globo em Alagoas.
O Plano Collor
O melhor, e mais irônico de tudo, é que o mesmo jornalismo que construiu aquele personagem “mitológico”, o jovem viril, quase super-homem, que iria salvar o país, o destrói sem piedade. A partir do momento em que ele assume a Presidência e, ato contínuo, sua então ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, anuncia o malfadado Plano Collor, tudo começa a desmoronar.
A incredulidade e desconforto com o confisco do dinheiro de toda a população brasileira se traduzia na expressão claramente inconformada e indignada da então comentarista de economia Lillian Witte Fibe. Tanto na apresentação do estapafúrdio plano quanto nas entrevistas coletivas que se seguiram, ficava claro o completo despreparo daquela equipe econômica, além de um enorme e incompreensível grau de improviso. Para encurtar a história, o plano naufragou deixando um rastro de mortes e destruição para trás. Não bastasse isto, a partir do segundo e terceiro ano de governo, teve início uma série de denúncias de corrupção que, graças à ação da imprensa, acabaram comprovadas.
Sua excelência, o jornalismo
Foram, no final das contas – e isto a série tem o grande mérito de mastigar para o espectador – três grandes matérias que derrubaram Collor, o primeiro presidente eleito democraticamente após a ditadura.
A primeira delas, e talvez a mais lembrada de todas, foi a entrevista que o jornalista Luís Costa Pinto fez com Pedro Collor de Mello para a revista Veja. Com o título de “Pedro Collor Conta Tudo”, o irmão denunciava minuciosamente os esquemas financeiros de Fernando Collor com o seu chefe de campanha, PC Farias. A estocada bíblica de Pedro vai além. Ele conta que ele e o irmão consumiram drogas na juventude, entre elas cocaína e LSD. Não bastasse isto, ainda comenta sobre um suposto caso de uma investida sedutora de Fernando contra sua esposa, Thereza Collor, dentro do Palácio dos Martírios, nos tempos em que ainda era governador de Alagoas.
Pedro, no entanto, apesar de ter abalado a República, não tinha em mãos provas físicas contra o irmão, apenas a sua palavra. E foi aí que entrou uma segunda reportagem. Capitaneada por João Santana, então Diretor da Sucursal Brasília da revista IstoÉ, a revista encontrou Eriberto França, ex-assessor de Ana Acioli, secretária particular de Fernando Collor. O motorista era uma espécie de faz-tudo, que carregava grandes quantias de dinheiro, fazia pagamentos entre outros expedientes.
Apesar de bombástico, o depoimento também não trazia nenhum documento que o comprovasse. Foi então que entrou o inusitado de toda a história. O jornalista Jorge Bastos Moreno conseguiu provar que o carro modelo Fiat Elba, que o presidente Collor dirigia pra lá e pra cá em Brasília, havia sido pago com um cheque emitido por um fantasma do esquema de PC Farias. Era o documento que faltava. Dali para o impeachment foi um passo.
O presidente inútil
A série tem um outro mérito, este inadvertido. Ao relembrar alguns feitos do governo Collor, como a abertura para as importações (é emblemático até hoje o então presidente ter chamado os carros nacionais de “carroças”) e também a demarcação de várias terras indígenas, entre elas a homologação do território Yanomami em 1992, o programa nos chama a atenção para outro fato.
Até mesmo o governo Fernando Collor, considerado um dos mais tumultuados e piores da história da República brasileira, deixou um ou outro feito. Com esta constatação, até o momento pode-se dizer com clareza:
O único governo que não deixou nenhuma marca, não fez nada que se aproveite para o bem do povo brasileiro, foi o de Jair Bolsonaro (PL).