Reminiscências

Comeu garrolê, morreu! – Por Mouzar Benedito

No final da tarde, raramente eu me lembro do que comi no almoço, mas demora poucos minutos pra me lembrar de coisas “de antigamente”

Escrito en Opinião el
Mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
Comeu garrolê, morreu! – Por Mouzar Benedito
Nova Resende, em Minas Gerais. Reprodução de Vídeo/Facebook

Véio pode não se lembrar do que almoçou há algumas horas, mas lembra-se de coisas acontecidas na infância... é o que dizem. E acho que tem a ver. No final da tarde, raramente eu me lembro do que comi no almoço, mas demora poucos minutos pra me lembrar de coisas “de antigamente”. Hoje comecei a me lembrar de umas coisas que falava ou ouvia na minha infância, em Nova Resende, e não tive a menor dificuldade. Lembrei um monte e parei. Podia continuar rememorando, mas parei depois de ruminar sobre o que conto a seguir.

Parte dessas coisas qualquer pessoa mais velha de cidade com cultura caipira pode se lembrar também, mas muitas destas lembranças são só de Nova Resende. Tenho saudade. Algumas cito como coisas do passado e outras como existentes ainda, porque acho que continuam valendo. Viva! Aí vão...

Meter o pé na cuia de melado é o mesmo que tomar uma atitude radical, chutar o balde na gíria atual, ou chutar o pau da barraca. “Esse patrão já me encheu o saco... vô metê o pé na cuia de melado”.

Algo parecido, mas não igual é revirar nos pés. Quando estávamos decididos a fazer alguma coisa e víamos que era uma fria, “largava mão” daquilo e revirava nos pés... Por exemplo: “A Ofélia tava pra casá com o Vito, mas quando ficou sabendo de umas história dele, reviro nos pé”. Assim mesmo, história e pé sem o s no final, pois o dialeto caipira tem raízes no tupi adaptado pro português, e em tupi as palavras não têm a letra S. E os verbos não têm R no final. Casar é casá.

Mamá no Zé Véio era uma expressão que só existia lá, mas nem lá existe mais, pois acho que a geração atual nem sabe quem foi o Zé Véio. Mandar alguém mamar no Zé Véio era o mesmo que mandar à merda, dar um chega pra lá, mandar plantar batata...

Fazer o quilo, até hoje falam em muitos lugares, é cochilar depois do almoço. Dizer que alguém é muxiba também é mais ou menos comum. Muxiba é pão-duro, mão de vaca.

Borná, síncope de embornal, também é comum, mas em Nova Resende usava-se mais a palavra mucuta para falar desse saco de pano pendurado a tiracolo. E tinha um costume curioso: muita gente da roça achava que na cidade tinha muitos ladrões (vixe! Isso era uma raridade), e quanto maior a cidade, mais ladrões... Na época, nem fazia muito sentido, hoje digo que teriam toda razão. Uma lembrança: Guaxupé era nossa “capital”, tinha uns quinze mil habitantes quando Nova Resende tinha uns dois mil e poucos dentro da cidade. Para comprar algumas coisas que não tinham na nossa terra, consultar médicos especialistas ou mandar fazer óculos, ia-se lá. E levava-se dinheiro vivo. Como não ser roubado? Colocavam o dinheiro no fundo da mucuta e em cima dele pão e outras coisas não atraentes para os “amigos do alheio”, como o forrobodó, quer dizer, pão doce.

Pagode existia lá muito antes da variante do samba criada no Rio de Janeiro. Mas não era a mesma coisa: era baile de roça.

Dormiu com o João Cunha? Em todas as cidades pequenas tinha sempre alguém que era conhecido como o mais mentiroso, o mais bobo, o mais feio etc. Em Nova Resende, João Cunha tinha a fama de ser o sexualmente mais “bem dotado”. E lá, “ser largo” era ter muita sorte. Então, quando alguém dava sorte demais, era largo demais, diziam: “Dormiu com o João Cunha?”.

Gumitá era o mesmo que chamá o Juca, lançá, gorfá... quer dizer, vomitar. Muitos roceiros que iam à cidade evitavam ter que comprar qualquer coisa, ou mesmo almoçar. Muitos “enchiam o pandulho” pouco antes de passar a jardineira. Com o estômago supercheio de comida pesada e a jardineira balançando ao passar por buracos das estradinhas, começavam a passar mal, ter ânsia de vômito. E era comum vomitarem. Punham a cabeça pela janela e mandavam ver. Numa dessas, na jardineira que ia de Nova Resende para Guaxupé, um casal entrou e ocupou um banco lá no fundão do ônibus, quer dizer, da jardineira. Dali a pouco, o homem gritou para o motorista: “Para a jardinêra, chofer! Para a jardinêra!”. O motorista parou e perguntou o que havia acontecido. O passageiro explicou: “A muié foi lançá i gumitô a dentadura”. “Foi longe?”, perguntou o motorista. “Não. Foi logo ali atrais”. O motorista deu ré, parou, abriu a porta e o homem desceu para procurar a dentadura “vomitada” pela mulher. Voltou meio triste. “Num achô?”, perguntou o motorista, e ele respondeu: “Achá, eu achei. Mais a rodêra passô purriba i ismagaiô ela”.

Mamá na gata ocê num qué, né? Esta é uma expressão usada até hoje em muitos lugares, como resposta a uma proposta indecorosa. Por exemplo: “Cê pode me emprestá cem conto pra eu te pagá o ano que vem, sem juro?”. Adivinhem a resposta!

Cara de mamão macho era o sujeito com rosto comprido e estreio. Por falar nisso, tinha uma expressão para pessoas com cara de nojo: “Tá com cara de quem foi peidá e cagô”.

Cambito até hoje é palavra usada como sinônimo de perna fina: “Aquela moça tem uns cambito...”. Ou, de forma mais completa, “cambito de sabiá”. Namorá uma muié dessas? Sartei de banda, quer dizer, tirei o corpo fora. Outra forma de falar que ia fugir de alguma coisa era “pulá na capoeira”.

Gumilásti da butina, o que é? Alguns tipos de botina têm, dos dois lados dos tornozelos, elásticos que facilitam para calçar ou descalçar. Goma elástica, dizem. Mas na nossa pronúncia, gumilásti. Era comum em Nova Resende falar de acidente muito feio em que o sujeito se ferrou completamente: “Num sobrô nem u gumilásti da butina dele”.

Sanduíche de picolé não era uma expressão, mas um hábito. Pessoas que raramente iam à cidade gostavam de consumir o que não havia na roça, principalmente pão e picolé. A partir de uma certa época, compravam pão e picolé ao mesmo tempo, e mordiam alternadamente os dois. Depois, passaram a abrir o pão, colocar o picolé dentro, apertar e puxar o palito, ficando o pão com o picolé dentro. Só de olhar eles comerem aquilo me dava dor de dente.

Motel foi uma coisa comum para encontros amorosos clandestinos em São Paulo e outras cidades. Em Nova Resende nunca teve, mas muito antes já tinha o “matinho do Bié”, perto da cidade, onde casais chegavam às vias de fato. Depois, quando começou a onda de motéis em outros lugares, lá brincavam chamando o matinho do Bié de “matel”. Outros lugares “comprometedores” eram atrás do cemitério, atrás da igreja e “na micro-ondas” (esta já nos anos 1960, quando instalaram uma torre de micro-ondas para transmissão de telefone e rádio no ponto mais alto ao lado da cidade e abriram uma estradinha pra lá).

A polícia era muito violenta, “bater em presos”, quer dizer, torturar, parecia coisa “normal” no Brasil inteiro. Em Nova Resende tinha um carcereiro muito humano, um preto velho chamado Brás, com autoridade moral para impedir a violência contra os raros presos. Quase não havia crimes, o que ocorria com alguma frequência era algum bêbado aprontar em botecos e serem levados para passar uma noite na cadeia. E o Brás não deixava a polícia bater nele. Então, quando algum sujeito “custoso” (difícil, encrenqueiro) começava a encher o saco ou a fazer a fazer “ingrizia” (aprontar confusão), diziam: “Aproveita enquanto o Brás é carcereiro”.

Alguém de fora podia ouvir falar de engenheiros e embaixadores da cidade e da roça, e se espantar com a quantidade deles... Mas engenheiro era quem fazia rapadura, trabalhava num engenho, e embaixador é o cantor principal de folia de reis. Eu sempre disse que tive parentes engenheiros e embaixadores.

Não há tatu que aguente... esta é uma expressão usada para falar de que é impossível resistir a alguma coisa. Mas pouca gente sabe da origem dela. Quando tatu entra na toca, gruda as patas na terra e pode puxar que não sai... Enfiando um dedo no fiofó dele, ele encolhe as patas e a gente puxa... “Não há tatu que aguente” um dedo no fiofó...

Vai prantá batata (que já citei), é o mesmo que vai prantá fava, vai peidá nágua, vai beliscá noutro anzor. Sobre esse último, pescador costuma se irritar muito com uns peixes que parecem ter a manha de comer a isca sem meter a boca no anzol, vão beliscando de lado. Pode ser também “vai baixá noutro centro, espírito ruim”. Centro, no caso, seria centro espírita.

Tinha pouquíssimos automóveis, mas muitos cavalos, o meio de transporte individual mais comum (depois substituídos em grande parte por motocicletas). Algumas lojas, padarias ou outros estabelecimentos tinham currais ao lado pra os fregueses deixarem os animais. Aliás, todos sabiam que cachorro, gato, bode, vaca e outros bichos são animais, mas quando se falava “animar”, estava-se referindo a cavalo (ou égua, claro). Na barbearia do meu pai mesmo tinha um curral onde fregueses e amigos podiam deixar o cavalo o dia inteiro enquanto faziam qualquer coisa na cidade. E aí tinha algo relacionado a isso: o mijacão. Hoje em dia é uma raridade, porque todo mundo anda calçado, ainda que seja com uma sandália havaiana. O tal mijacão é uma inchação que dá na sola ou entre os dedos do pé, por contato com urina de cavalo. Quem teve, diz que dói muito. Acreditava-se que não tinha cura com remédios, só sarava com benzeção.

Quando não se conhecia uma expressão para falar de alguma coisa, valia a criatividade, criava-se uma própria que surpreendia até mesmo os conterrâneos. Um homem parou o jipe num posto de gasolina e pediu: “Põe trinta mirréis de gasolina. E pode consertá o pneu de remedeio”. O frentista entendeu que era o pneu de estepe, mas perguntou: “Pneu de remedeio? Por quê?”. O sujeito respondeu: “Uai, quando fura um pneu a gente remedeia com esse”.

Para falar de uma chuva bem forte, que causou enchente: “Choveu até cachorro beber água sentado”. Muita gente da cidade erra ao falar isso, diz “até cachorro beber água em pé”. Ora, cachorro normalmente bebe água em pé. Quando se senta sobre as patas traseiras é que fica com a cabeça erguida e não consegue chegar a boca ao chão.

Para dizer que alguém é barrigudo demais, diziam que tinha “barriga de sete armoço”. Falando nisso, quando ofereciam café, era melhor que fosse “café de duas mão”, quer dizer, acompanhado de alguma coisa pra comer. Falando em comer, contavam de alguém que “comeu garrolê, morreu”. Garrolê não era um tipo de comida, queria dizer agarrou a ler, começou a ler com sofreguidão. Diziam que ler de barriga muito cheia era perigoso, podia até matar. Daí, comeu garrolê...

Quando alguém tá levando porrada de todos os lados (no sentido literal ou figurado), dizem que ele “tá que nem barata em galinheiro”.

Muitas coisas ainda me vêm à lembrança, mas termino com alguns ditados de lá:

- Sossego de homem é muié feia e cavalo capado.

- Mió do que uma muié, só duas muié. Mió do que duas muié, só um caminhão de muié.

- Mais vale um gosto do que um caminhão de abóboras.

- Pra arrastá um hômi, um pentelho de muié tem mais força do que um caminhão.

- Casa de muié feia num precisa de tramela.

- Boi sonso é que pula cerca.

 *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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