Análise

Limites jurídicos da retórica de intervenção estrangeira no Brasil – Por Thaís Cremasco

Soberania não se terceiriza. Um país que admite, mesmo retoricamente, o bombardeio de suas águas por outro Estado deixa de ser dono de si

Escrito en Opinião el
Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, é representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça.
Limites jurídicos da retórica de intervenção estrangeira no Brasil – Por Thaís Cremasco
Clã Bolsonaro. @flaviobolsonaro/Instagram

Inspirada no artigo “Clã Bolsonaro usa 64 mortos para guerra contra Lula e justificar bombardeio da Guanabara por Trump”, escrito por Plínio Teodoro e publicado na Revista Fórum, escrevo esta análise sob o ponto de vista jurídico. O texto de Plínio, além de preciso e contundente, expõe com clareza como a retórica autoritária tenta se disfarçar de discurso patriótico. O que está em jogo, porém, vai muito além da disputa política: trata-se de uma violação dos fundamentos constitucionais e internacionais que sustentam o Estado brasileiro. 

Quando um senador da República sugere publicamente que o governo dos Estados Unidos realize ações militares em águas brasileiras, a afronta não é apenas moral ou diplomática. É jurídica. O princípio da soberania, previsto no artigo 1º, inciso I, da Constituição Federal, é um dos pilares da República e não pode ser relativizado. Nenhuma autoridade, por mais poder político que detenha, tem o direito de solicitar ou autorizar a atuação de forças estrangeiras no território nacional sem amparo constitucional. 

No plano internacional, a Carta das Nações Unidas proíbe expressamente o uso da força ou a ameaça contra a integridade territorial de qualquer Estado. Essa norma é considerada de jus cogens, ou seja, imperativa e inderrogável. Portanto, qualquer tentativa de permitir, incentivar ou naturalizar a presença militar estrangeira no Brasil, fora das hipóteses legais, constitui uma violação direta do direito internacional.

A Constituição brasileira também é inequívoca quanto a isso. O artigo 49, inciso XIV, determina que cabe exclusivamente ao Congresso Nacional autorizar o Presidente da República a permitir a entrada ou o trânsito de forças estrangeiras em território nacional. Ou seja, nem parlamentares individualmente nem militares, nem sequer ministros de Estado podem, por iniciativa própria, discutir, sugerir ou endossar uma intervenção estrangeira. Trata-se de competência exclusiva e controlada, justamente para proteger a soberania e evitar aventuras autoritárias.

Mesmo a imunidade parlamentar, garantida pelo artigo 53 da Constituição, não cobre esse tipo de conduta. A imunidade existe para assegurar a liberdade de opinião e o exercício do mandato, não para permitir manifestações que atentem contra a integridade nacional. Quando um parlamentar usa sua voz pública para sugerir ações militares estrangeiras, não está exercendo o mandato, mas rompendo o pacto constitucional que jurou defender.

Do ponto de vista jurídico, tal conduta pode ser enquadrada como crime de responsabilidade, previsto na Lei nº 1.079 de 1950, que considera infração grave qualquer ato que atente contra a existência da União, a integridade do território nacional e o livre exercício dos poderes constitucionais. Ainda que não haja execução prática de uma intervenção, a simples incitação pública a ela é uma violação potencial da ordem democrática e da soberania do Estado.

Além da ilegalidade formal, há um dano simbólico que não pode ser ignorado. Ao sugerir que o Brasil dependa de bombardeios estrangeiros para combater o crime, destrói-se a confiança nas instituições de segurança, deslegitima-se o papel das Forças Armadas e alimenta-se a percepção de que o país é incapaz de governar a si mesmo. Esse tipo de discurso não apenas ofende a Constituição: ele humilha o Brasil perante o mundo e enfraquece nossa posição na comunidade internacional.

O artigo de Plínio Teodoro acerta ao demonstrar como o uso político da tragédia — neste caso, a morte de mais de 100 pessoas (em números atualizados) — serve para construir narrativas de guerra e justificar ações inconstitucionais. O direito, contudo, nos obriga a ir além da denúncia moral: ele nos impõe a responsabilidade de reagir institucionalmente. Cabe ao Ministério Público Federal, ao Senado e à Comissão de Ética Parlamentar apurar se tais manifestações configuram violação aos deveres do cargo ou atentado contra a soberania nacional.

A defesa da soberania é, antes de tudo, uma defesa da democracia. A Constituição de 1988 nasceu da promessa de que nunca mais aceitaríamos o autoritarismo, seja interno ou importado. É por isso que qualquer gesto que legitime o uso da força estrangeira contra o território brasileiro precisa ser tratado como o que realmente é: uma ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Soberania não se terceiriza. Um país que admite, mesmo retoricamente, o bombardeio de suas águas por outro Estado deixa de ser dono de si. E é nesse ponto que o discurso deixa de ser apenas político e passa a ser jurídico — e profundamente perigoso. O golpe não começa com tanques nas ruas. Ele começa com palavras ditas em nome da ordem.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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