Migas – Por Luis Cosme Pinto
Uma crônica sobre as dores e prazeres que só as mulheres têm coragem de compartilhar
A mão direita agarra o joelho. Os dedos pretos, de unhas roídas, estão pálidos, tamanha é a força sobre a perna. A mão canhota, também crispada, sustenta o telefone grudado ao ouvido. Sobrancelhas se juntam e uma ruga divide a testa. O rosto agora é de pedra, os lábios se abrem e a mulher brada.
- Para de ser perturbado. Em nome de Jesus! Josiel, eu vou repetir: para de ser perturbado. Em nome de Jesus! “Cê” tá ouvindo?
...
- É? Então, some da minha vida. Se eu chegar e “cê” ainda tiver aí, não sei o que faço, Josiel.
A jovem mulher, talvez com trinta e cinco anos ou um pouco mais, desliga e então murmura pra ela mesma. “E uma peste dessas tem Jesus no coração?”
Viajamos lado a lado em um ônibus. Vejo os joelhos grudados um no outro, assim como os tornozelos e as sapatilhas arredondadas. Os ombros se curvam como a suportar uma jamanta. Sobre o vestido simples de flores miúdas, a mochila vermelha, que ela abre para guardar o celular. Como se pudesse esconder lá dentro também a raiva.
De rabo de olho, enxergo minha parceira de banco. É uma mulher de beleza rústica e braços fortes. Provavelmente, uma trabalhadora que desejava voltar pra casa em paz depois de um dia de batente. Faltou combinar com Josiel.
A passageira engole o choro e aperta os maxilares. Um pote de cólera e dinamite viaja ao meu lado. Ela abre novamente a mochila, pega o telefone, mira em volta e manda um áudio, me dando as costas.
- Miga, quando puder me liga.
A porta se abre, o cobrador balança a cabeça em despedida. Então, encaro a mulher, que desvia os olhos de jabuticaba a encarar o bairro de Pinheiros e sua gente apressada do lado de lá da janela.
A calçada me recebe com vento gelado e as primeiras gotas de uma garoa que já é chuva. Saí do ônibus, mas minha companheira de viagem não saiu de mim. Afinal, o que despertou tanta mágoa, tanto ódio? Traição pode ser a resposta mais fácil. Maldito Josiel, dirão muitos e muitas.
Não sei nem vou saber, mas o que me chama a atenção é a solidariedade de outra mulher, essa ainda mais desconhecida: a tal “miga” que já deve ter ligado.
Algo me diz que daquelas duas mulheres vai brotar conversa séria, de gente grande. Duas mulheres unidas: uma a escutar com máxima atenção, aconselhar, ajudar. Outra a desabafar, xingar, chorar. Se curar da decepção, com coragem e fé.
Aos 64 anos, me pergunto por que, nós, homens, não temos a mesma capacidade de revelar nossas derrotas, sobretudo as sentimentais. Por que é mais fácil falar do VAR, do trabalho, da eleição, do que de nossas dores e perdas? Por que até hoje não aprendemos com elas?
Eu era adolescente e não entendia por que as mulheres iam juntas ao cinema, ao teatro, a um show e os homens não. Dois amigos então, nem pensar. Só se fossem gays.
Um dia, meu irmão brincou comigo antes da sessão de “Trinity é meu nome”, no cinema América, da praça Saens Peña: homem com homem no escurinho, só se for irmão, ele contou, risonho e sério ao mesmo tempo.
Homem de verdade convidaria o amigo para ir a estádio, boteco, oficina mecânica. Foi o que me ensinaram. Exagero ou não, nunca fui ao cinema só com um amigo. Nem ao teatro.
A chuva engrossa, molha meus óculos e me pergunto: Quem vai enxugar as lágrimas de Josiel, se nem chorar ele pode?
*O cronista Luis Cosme Pinto é autor de “Acabou, mas continua”, da editora Cachalote. O livro será lançado em 08 de novembro, na livraria Folha Seca, no Rio de Janeiro.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.