Se quem chefia o tráfico mora nos condomínios de luxo, por que operações policiais matam na favela? - Por Thaís Cremasco
Maiores apreensões de fuzis da história recente não foram feitas em becos, mas em endereços de elite, e é no morro que o Estado entra atirando
A Constituição Federal de 1988 começa com uma promessa: “a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho".
Mas, no país onde o Estado invade favelas como se fossem territórios inimigos, essa promessa é sistematicamente violada.
O artigo 5º da mesma Constituição assegura que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e que “a vida é inviolável”.
No entanto, a cada nova operação policial, essa cláusula pétrea se torna uma ficção jurídica para milhares de brasileiros e brasileiras.
No Rio de Janeiro, a mais recente “megaoperação” deixou 64 moradores mortos e quatro policiais, em uma ação que o governo chama de “combate ao tráfico”, mas que, na prática, se assemelha mais a uma execução coletiva autorizada pelo Estado.
A pergunta que ecoa é simples e brutal: Se quem chefia o tráfico mora em condomínios de luxo, por que os corpos tombam nas favelas?
As maiores apreensões de fuzis da história recente não foram feitas em becos, mas em endereços de elite.
O número de armas encontradas na casa de um amigo do ex-presidente Bolsonaro supera as apreensões desta operação inteira.
Os chefes das milícias, do tráfico internacional e do contrabando financeiro não vivem no alto do morro, vivem atrás de portões automáticos, com segurança privada, helicópteros e blindagem social.
Mas é no morro que o Estado entra atirando.
É sobre corpos negros, pobres e periféricos que o Estado brasileiro ainda exerce seu poder mais primitivo: o de matar.
O artigo 144 da Constituição estabelece que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, e deve ter por finalidade a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Nada disso é compatível com ações que transformam favelas em campos de extermínio.
A cada incursão, o Estado fere de morte o próprio texto constitucional e aprofunda o abismo entre o que promete e o que pratica.
A ONU se disse horrorizada com o massacre.
Benedita da Silva chorou ao lembrar que nos morros vivem trabalhadores e trabalhadoras, e que o discurso de “guerra ao tráfico” se converteu, há muito, em guerra aos pobres.
E é isso o que se vê: não há guerra contra o crime, há guerra contra o território onde o Estado nunca entrou com escola, com saneamento, com saúde, com justiça.
A favela não é o problema.
A favela é o retrato do fracasso de um país que não soube garantir direitos iguais.
E quando o Estado volta a subir o morro, armado até os dentes, não é para garantir a Constituição, é para negar a Constituição.
É para reafirmar que há vidas que valem menos, que há brasileiros cuja cidadania é condicional, revogável, descartável.
O direito à vida (art. 5º, caput), o direito à igualdade (art. 5º, inciso I) e o dever do Estado de proteger a pessoa humana (art. 1º, III) não são meras palavras.
São compromissos civilizatórios.
Quando o Estado mata, tortura, silencia e abandona, ele deixa de ser República e se transforma em algo mais próximo da barbárie institucionalizada.
O Brasil precisa escolher se quer um Estado que proteja ou um Estado que produza mortes.
Porque a segurança pública que se sustenta sobre cadáveres é apenas uma política de terror com outro nome.
Enquanto o helicóptero sobrevoa o morro e a bala rasga a Constituição, seguimos perguntando e repetiremos quantas vezes for preciso:
Se quem chefia o tráfico mora nos condomínios de luxo, por que as operações policiais continuam matando na favela?