Análise

Tarifas de EUA contra Brasil e Canadá sob fogo no Senado - Por Maria Luiza Falcão Silva

A disputa em torno das tarifas expõe uma questão de fundo: a erosão do consenso liberal que sustentou o comércio global nas últimas décadas

Escrito en Opinião el
Maria Luiza Falcão Silva é economista com mestrado em Economia pela University of Wisconsin-Madison e doutorado em Economia pela Heriot Watt - Escócia. É professora aposentada da Universidade de Brasília e foi assessora da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Seus trabalhos são voltados para as áreas de Economia Internacional, Economia Monetária e Financeira e Desenvolvimento Econômico . É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed).
Tarifas de EUA contra Brasil e Canadá sob fogo no Senado - Por Maria Luiza Falcão Silva
Capitólio, em Washington. Unsplash

As tarifas impostas pelos Estados Unidos a parceiros comerciais voltaram ao centro do debate político em Washington. Na noite de terça (28), o Senado americano aprovou, por 52 votos a 48, uma resolução bipartidária que busca revogar as tarifas extraordinárias aplicadas por Donald Trump sobre produtos brasileiros — atualmente zeradas para importações americanas, mas com sobrecarga de até 50 % sobre produtos do Brasil — e as alíquotas de 35 % contra o Canadá. A decisão representa o mais forte desafio do Legislativo à política comercial do presidente desde o início de seu segundo mandato.

O caminho até aqui

A política tarifária de Trump nasceu de uma lógica de “reciprocidade forçada”. Desde o primeiro mandato, o republicano sustenta que os Estados Unidos foram explorados por décadas de comércio “injusto” e defende tarifas punitivas contra parceiros que, segundo ele, “se aproveitam” do mercado americano.

Em 2025, o presidente voltou a acionar a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (IEEPA, na sigla em inglês) para justificar aumentos súbitos de tarifas. No caso brasileiro, o argumento oficial foi o “desequilíbrio comercial” e a suposta falta de abertura do Brasil a produtos agrícolas e industriais norte-americanos.

Na prática, contudo, os números do Departamento de Comércio mostravam o oposto: em 2024, os EUA exportaram mais para o Brasil do que importaram. Economistas e parlamentares passaram a ver a medida como gesto político, ligado à pressão do ex-presidente Jair Bolsonaro — aliado de Trump — e às tensões com o governo Lula.

No caso canadense, as tarifas de 35 % recaem sobre aço, alumínio e produtos agrícolas, e foram justificadas como “medidas de segurança nacional”. A retaliação do governo de Ottawa foi imediata: o Canadá impôs tarifas espelho e anunciou recurso à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Senado reage

Na sessão de ontem, lideranças republicanas moderadas se juntaram aos democratas para aprovar a resolução que revoga o estado de emergência nacional usado por Trump para sustentar as tarifas. O texto foi proposto pela senadora Susan Collins e pelo democrata Chris Coons, que argumentaram que “a política comercial não pode ser conduzida por decretos de emergência perpétuos”.

Cinco senadores republicanos romperam com o governo, sinalizando fissuras internas no partido. O líder da maioria, Mitch McConnell, tentou adiar a votação, mas foi derrotado por margem estreita.

A medida ainda precisa passar pela Câmara dos Representantes, dominada por aliados de Trump, onde sua aprovação é improvável. Mesmo assim, o gesto do Senado tem enorme peso político: mostra que a ideia de uma presidência com poderes ilimitados sobre o comércio exterior encontra resistência crescente.

Trump pode manter as tarifas mesmo assim?

Sim — ao menos por enquanto.

O sistema legal americano concede ao presidente amplos poderes durante uma emergência nacional. Enquanto a Câmara não ratificar a revogação ou o Judiciário não considerar o decreto abusivo, Trump pode manter as tarifas. Ele também pode vetar qualquer resolução do Congresso, e um veto só seria derrubado com maioria de dois terços em ambas as casas, algo improvável neste contexto.

Por isso, mesmo derrotado no Senado, Trump conserva instrumentos para prolongar as medidas. Analistas apontam, porém, que essa estratégia traz riscos: os grandes importadores americanos e o agronegócio — setores tradicionalmente republicanos — já pressionam por previsibilidade e alertam para o aumento de custos e inflação.

Impactos para o Brasil e o Canadá

Para o Brasil, as tarifas afetam principalmente café, carne bovina e manufaturados de alumínio. O Itamaraty mantém postura cautelosa, mas fontes em Brasília admitem que o país poderá recorrer à OMC caso as sanções se prolonguem. O episódio também reforça a urgência de ampliar o comércio com os países do BRICS, a Ásia e a União Europeia, reduzindo a dependência do mercado americano.

Para o Canadá, a situação é mais delicada: cerca de 75 % das exportações canadenses têm como destino os Estados Unidos. Essa dependência estrutural, construída ao longo de décadas do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) — assinado em 1994 entre Estados Unidos, Canadá e México criando uma ampla zona de livre comércio entre os três países, eliminando tarifas e barreiras alfandegárias em praticamente todos os setores —, e o Acordo Estados Unidos–México–Canadá (USMCA, na sigla em inglês) —  versão nova do Nafta modernizado e politicamente rebatizado por Trump  —, transforma qualquer tarifa em abalo sísmico para sua economia.

Ottawa já classificou a medida como “ataque a um aliado histórico” e busca costurar uma frente bipartidária no Congresso americano para derrubar as sanções.

Um debate maior: poder presidencial e desordem global

A disputa em torno das tarifas expõe uma questão de fundo: a erosão do consenso liberal que sustentou o comércio global nas últimas décadas. Trump utiliza instrumentos de emergência como arma política e eleitoral, rompendo com a tradição de previsibilidade que os EUA impuseram ao sistema multilateral desde 1945.

O Senado, ao reagir, tenta resgatar o equilíbrio entre Executivo e Legislativo, mas enfrenta um presidente disposto a testar os limites institucionais. Para o mundo, o episódio reforça a percepção de que o sistema comercial internacional entrou numa era de instabilidade permanente, na qual decisões unilaterais de Washington podem redesenhar fluxos de comércio da noite para o dia.

E agora?

A votação de ontem não encerra o impasse, mas inaugura uma nova fase: a da resistência institucional ao voluntarismo econômico. Trump pode adiar, vetar e recorrer — mas já não governa sem contestação.

Para o Canadá, o episódio é um alerta sobre os riscos de depender de um só mercado. Quando 3/4 das exportações de um país cruzam a mesma fronteira, qualquer mudança política se transforma em ameaça existencial.

Para o Brasil, a lição é mais estratégica: embora menos dependente, o país precisa consolidar alternativas sólidas — na Ásia, no Mercosul e no BRICS — para não voltar a ser refém de oscilações da Casa Branca. Ao mesmo tempo nos leva a perguntar se a química entre os presidentes Lula e Trump tornar-se-á irrelevante?

Mas fica a lição: em tempos de incerteza, diversificar é a forma mais inteligente de proteger a soberania econômica. A diplomacia do futuro será, antes de tudo, a arte de não depender.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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