Os ataques “legais” ao Estado de Direito no Brasil – Por André Lobão
No Rio de Janeiro, estado que há 31 anos é governado por políticos de direita e extrema direita, ocorre um processo evidente de limpeza social
A definição de Estado Democrático de Direito pressupõe que o poder do Estado deve estar submetido às leis e garantir direitos fundamentais a qualquer cidadão, não estando nenhum governo ou agente de Estado acima da lei.
Em tese, o Estado brasileiro, em toda sua esfera institucional, passando pelos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo e por todas as esferas da federação a partir dos municípios, estados e União, deveria funcionar assim, mas não funciona.
“Todo traidor da Constituição é um traidor da pátria”, já dizia Dr. Ulysses
O que se verifica é que em nome da lei não se respeita a lei. Há 37 anos, em 1988, o Brasil outorgou sua Constituição vigente. O Dr. Ulysses Guimarães, que coordenou todo o processo dos trabalhos de elaboração do novo conjunto de leis do Estado brasileiro, no dia de sua promulgação disse em seu discurso:
“Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”, disse o deputado federal, condutor dos trabalhos, considerado um dos mais ferrenhos opositores da ditadura civil militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985.
Dr. Ulysses morreu em 1992, aos 76 anos, em um acidente de helicóptero em Angra dos Reis, e seu corpo nunca foi encontrado.
O neoliberalismo na raiz do problema
Hoje, em 2025, tudo o que foi consignado na Carta de 1988 é atacado e descumprido. Desde que foi promulgada, a Constituição sofre sistemáticos ataques e modificações que tiram direitos dos trabalhadores e aumentam a prerrogativa da violência de Estado, violando os direitos humanos.
A chacina do Complexo da Penha, com mais de 120 mortos, é o exemplo mais fiel desse processo que culmina na naturalização da barbárie.
O imperativo da lei deveria ser de compreensão e aceitação absoluta pelo agente público e por toda a sociedade. O interesse público está acima de qualquer coisa. O problema é que no atual contexto é propositadamente aplicada uma lógica de confundir o interesse público com o interesse da burguesia, ação claramente promovida pela direita e extrema direita. Quer exemplos? Desmonte do serviço público, privatizações, entrega de recursos naturais e flexibilização de direitos trabalhistas.
A burguesia, ao adotar o neoliberalismo como premissa e método para aplicar a defesa de seus interesses na gestão do Estado, rasga e muda todo o arcabouço constitucional de 1988, através do Legislativo, referendado pelo Judiciário e posto em prática pelo Executivo.
O excludente de ilicitude é reconhecido por lei
Com isso, se dá a legitimidade para a diminuição do papel do Estado em determinadas áreas de atuação, como nos direitos e na promoção social, mas reforça seu papel na prerrogativa exclusiva do uso da violência e no exacerbamento do punitivismo penal. Assim, a Segurança Pública ganha carta branca para praticar justiça com as próprias mãos. Isso é exatamente o Excludente de Ilicitude, previsto no Código Penal brasileiro. Que é aplicado quando a conduta do agente público é interpretada como:
-Estado de necessidade: acontece quando a pessoa comete uma infração para salvar a si mesma ou a terceiros de um perigo atual e inevitável, sem que tenha provocado o perigo voluntariamente;
-Legítima defesa: prevista no artigo 25 do Código Penal, ocorre quando alguém, usando moderadamente dos meios necessários, repele uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outro;
-Estrito cumprimento de dever legal: quando alguém, por obrigação de lei, pratica um ato que seria criminal em outras circunstâncias. Um exemplo é um policial algemando um criminoso; e
-Exercício regular de direito: quando uma pessoa age de acordo com um direito que lhe é concedido pela lei.
Assim, há uma configuração jurídica para não punir possíveis abusos de agentes do Estado, principalmente na Segurança Pública.
Guardas Municipais já podem utilizar armas letais como acontece com no Rio de Janeiro, que agregou em suas filas uma divisão de “elite”, a Força Municipal.
O fato é que o Brasil vive a realidade da aplicação de uma “limpeza social”, nos moldes supremacistas raciais aplicados em regimes de segregação como aconteceu nos EUA até os anos 1960, na África do Sul do apartheid e, atualmente, na Palestina a partir de Israel.
Aqui no Rio de Janeiro, um estado que há 31 anos é governado por políticos de direita e extrema direita, ocorre um processo evidente de limpeza social.
Segundo o Instituto Fogo Cruzado, no seu relatório mensal divulgado em 09/10, entre as 146 pessoas baleadas em setembro deste ano, 53% (78 vítimas) foram atingidas durante ações e operações policiais: 44 morreram e 34 ficaram feridas. Em setembro de 2024, entre as 131 pessoas baleadas, 42% (55) foram atingidas durante ações e operações policiais: 14 morreram e 41 ficaram feridas. Veja aqui o relatório.
Judiciário se movimenta para investigar a chacina da Penha
Segundo matéria publicada na Fórum, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, criticou o desenlace da operação policial, que desencadeou a chacina no Complexo da Penha, citando que, ao abandonar os corpos de suspeitos mortos na invasão policial, que foram resgatados por parentes, a polícia do Rio violou o Estado de Direito. Leia a matéria.
As declarações do ministro foram dadas durante a análise de um caso de 2015, quando a Operação Centro Cívico, em Curitiba, resultou em mais de 200 pessoas feridas durante protestos de servidores estaduais. O Supremo discute se o Estado pode ser responsabilizado civilmente por atos de violência policial em situações desse tipo.
Ainda segundo informe da Fórum, a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou ao STF que aguarda o envio de dados do governo do Rio de Janeiro para avaliar possíveis medidas sobre a operação nas favelas. O parecer foi encaminhado após o ministro Alexandre de Moraes assumir a relatoria provisória da ADPF das Favelas, ação que trata da letalidade policial no estado.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.