OPINIÃO

Xi e Trump em Busan: o mundo diante da encruzilhada do século - Por Maria Luiza Falcão

A hora é da diplomacia civilizatória: aquela que entende que o progresso não é a vitória de uns sobre outros, mas o avanço de todos sobre a barbárie

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Maria Luiza Falcão Silva é economista com mestrado em Economia pela University of Wisconsin-Madison e doutorado em Economia pela Heriot Watt - Escócia. É professora aposentada da Universidade de Brasília e foi assessora da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Seus trabalhos são voltados para as áreas de Economia Internacional, Economia Monetária e Financeira e Desenvolvimento Econômico . É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed).
Xi e Trump em Busan: o mundo diante da encruzilhada do século - Por Maria Luiza Falcão
Xinhua

Depois de meses de escalada tarifária e acusações mútuas sobre comércio e tecnologia, Xi Jiping e Trump dialogam em Busan. O gesto de ambos em sentar-se à mesma mesa representou algo maior do que um armistício econômico: foi um teste de sobrevivência para o próprio multilateralismo.

O reencontro em Busan: um diálogo necessário

O encontro entre Xi Jinping e Donald Trump em Busan, na Coreia do Sul, em 30 de outubro, não foi apenas o reencontro entre os líderes das duas maiores economias do planeta — foi a tentativa de recolocar o diálogo no centro de uma ordem internacional cada vez mais fragmentada. Depois de meses de escalada tarifária e acusações mútuas sobre comércio e tecnologia, o gesto de ambos em sentar-se à mesma mesa representou algo maior do que um armistício econômico: foi um teste de sobrevivência para o próprio multilateralismo.

O cenário não poderia ser mais tenso. Desde o início do segundo mandato de Trump, Washington tem intensificado medidas protecionistas e restrições às exportações de terras-raras, pressionando as cadeias produtivas que sustentam a transição energética global. Pequim, por sua vez, reagiu com firmeza e serenidade, reafirmando sua disposição de cooperar, mas sem aceitar coerções. Xi foi direto: é hora de ampliar a lista de cooperações e reduzir a de problemas. O tom de estadista soou como contraponto à retórica de confronto que há anos domina a política externa americana.

Busan se transformou, por algumas horas, na capital simbólica de um mundo dividido entre o medo da ruptura e a esperança de uma recomposição. E, como nas antigas cúpulas de Yalta ou Bandung, os gestos ali realizados ecoam muito além do momento.

A economia mundial em transição

O pano de fundo econômico não deixa dúvidas: o planeta vive uma fase de estagnação prolongada, com sinais de esgotamento de um modelo baseado em dívida, financeirização e consumo desigual. O relatório da APEC Regional Trends Analysis publicado em maio de 2025,  já apontava uma desaceleração das economias asiáticas — de 3,6% em 2024 para cerca de 2,6% em 2026 —, reflexo direto do protecionismo americano e da fragmentação das cadeias produtivas globais.

A política tarifária dos Estados Unidos ameaça o sistema multilateral de comércio construído com tanto esforço após a Segunda Guerra. O protecionismo que Trump chama de “patriotismo econômico” se converteu em instrumento de pressão geopolítica. Hoje, as tarifas não são apenas barreiras comerciais: são armas diplomáticas.

Mas a China não se dobra. Com mais de 1,4 bilhão de habitantes e uma classe média que deve ultrapassar 800 milhões de pessoas na próxima década, o país avança em direção a um modelo de desenvolvimento voltado ao consumo interno, à inovação e à sustentabilidade. Xi vem insistindo em que a prosperidade compartilhada é o antídoto contra a instabilidade global — e que o crescimento de um país não precisa significar o declínio de outro.

Os números confirmam o peso dessa transformação. Em 2024, o comércio total de bens e serviços da China somou US$ 7,1 trilhões, praticamente o mesmo dos Estados Unidos. Pequim deixou de ser a fábrica do mundo para se tornar, cada vez mais, um mercado de destino. O que se desenha é um reequilíbrio global: o consumo asiático começa a substituir o americano como motor da economia mundial.

Nesse contexto, a reunião em Busan funcionou como uma espécie de bússola. Xi propôs reconstruir pontes e lembrar que a cooperação entre as duas maiores economias é indispensável para que o planeta reencontre o rumo do crescimento. Trump, pragmaticamente, acenou com a possibilidade de novos acordos — não por convicção, mas por necessidade. O que está em jogo já não é a liderança isolada de uma potência, mas a governabilidade do sistema internacional.

O novo eixo do multilateralismo

O encontro em Busan também mostrou que o centro de gravidade da política mundial se desloca, lentamente, para a Ásia. O Pacífico tornou-se o espaço onde se define o destino do século XXI. E, dentro desse tabuleiro, a China emerge como a força de equilíbrio que busca preservar a racionalidade do sistema internacional.

O multilateralismo, duramente abalado desde a invasão do Iraque e a crise financeira de 2008, reencontra na Ásia uma nova vitalidade. Organismos como a APEC, a ASEAN e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura demonstram que é possível construir mecanismos de cooperação regional baseados em complementariedade, e não em subordinação.

Xi Jinping tem insistido em um conceito central: o da coexistência pacífica entre grandes potências. Isso significa aceitar a pluralidade de modelos políticos e trajetórias de desenvolvimento, recusando a tentação do “excepcionalismo” que há décadas orienta a diplomacia americana. Essa visão se aproxima da tradição do Movimento dos Não Alinhados e dos princípios de Bandung — igualdade soberana, não interferência e benefício mútuo.

Em 1955, a Conferência de Bandung, realizada na Indonésia, reuniu líderes de 29 países recém-independentes da Ásia e da África — entre eles Nehru, Nasser, Sukarno e Zhou Enlai — para afirmar a autonomia do chamado Terceiro Mundo diante das potências coloniais e da Guerra Fria. Foi o berço do Movimento dos Não Alinhados e de uma diplomacia que defendia a soberania, a cooperação Sul-Sul e o respeito mútuo entre as nações. Setenta anos depois, a evocação de Bandung por Xi Jinping e outros líderes do Sul Global simboliza o retorno da ideia de um mundo multipolar, onde o diálogo substitui a dominação e o desenvolvimento é entendido como um direito, não um privilégio.

Baseando-se nesses princípios a China de Xi Jiping longe de buscar hegemonia, propõe uma nova forma de liderança: a da estabilidade. Enquanto os Estados Unidos de Donald Trump se dividem entre isolacionismo e intervencionismo, Pequim oferece previsibilidade, planejamento e visão de longo prazo — qualidades raras num mundo governado por ciclos eleitorais e impulsos de curto prazo.

O multilateralismo, portanto, não é apenas uma opção diplomática: é uma necessidade civilizatória. Diante de crises climáticas, guerras regionais e desigualdades explosivas, nenhum país pode prosperar sozinho. A cooperação é uma questão de sobrevivência coletiva.

O papel do Brasil e do BRICS

O Brasil observa essa movimentação de Busan com atenção redobrada. Ao lado de China, Índia, Rússia, África do Sul (BRICS) e das novas adesões como Egito, Etiópia e Indonésia (BRICS+), o país tem diante de si a oportunidade histórica de participar da reconstrução da governança global.

Os países do BRICS+, que realizaram em julho sua cúpula no Rio de Janeiro, representam mais do que um bloco econômico: são a expressão política de um mundo que busca alternativas à dependência do dólar e à tutela de Washington. A proposta de ampliar o uso de moedas locais no comércio e de fortalecer o Novo Banco de Desenvolvimento — presidido por Dilma Rousseff — sinaliza uma nova etapa de autonomia financeira.

O Brasil, em particular, pode ser o elo entre a diplomacia asiática da cooperação e a tradição latino-americana de solidariedade. A política externa do presidente Lula, centrada no diálogo e na inclusão, tem credenciais para recolocar o país como mediador respeitado entre o Norte e o Sul globais.

A reunião Xi-Trump mostra que, mesmo entre rivais estratégicos, o diálogo ainda é possível. Pode o Brasil, potência intermediária e fiadora histórica da paz regional, ajudar a consolidar uma arquitetura multipolar baseada na cooperação, não na submissão.

Em um mundo fatigado de guerras comerciais e ameaças militares, a palavra “planejamento” — tão presente no discurso chinês e tão ausente das democracias liberais — volta a soar como virtude. O Brasil, que já foi exemplo de políticas públicas de inclusão e desenvolvimento com estabilidade, pode reencontrar sua vocação de pensar o longo prazo.

A hora da diplomacia civilizatória

O reencontro de Busan talvez não tenha mudado o rumo imediato das coisas. Mas indicou um caminho. Xi e Trump, cada um à sua maneira, simbolizam a tensão entre duas lógicas — a do império e a da civilização. De um lado, o poder que tenta se afirmar pela força das tarifas e das bases militares; de outro, a proposta de uma convivência ordenada, baseada na soberania e no benefício mútuo.

O futuro do multilateralismo depende de qual dessas lógicas prevalecerá. E, por mais paradoxal que pareça, a sobrevivência da própria democracia americana talvez dependa da capacidade de Washington de aceitar que o mundo mudou.

A Ásia tornou-se o espelho do século XXI, e Busan o palco onde se esboça a nova diplomacia global. Cabe às demais nações — especialmente às do Sul Global — escolherem se serão meras espectadoras ou protagonistas de uma nova era de equilíbrio e respeito mútuo. A hora é da diplomacia civilizatória: aquela que entende que o progresso não é a vitória de uns sobre outros, mas o avanço de todos sobre a barbárie.

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