Código humano da linguagem – Por Washington Araújo
Cada prefixo revela uma forma de existir: o “per” que busca o máximo, o “co” que une, o “re” que refaz e o “in” que aprofunda
Há uma alquimia secreta nas palavras. Elas respiram, reagem, se combinam. São organismos vivos, feitos de som e sentido. Cada prefixo é uma centelha de pensamento. Uns inflamam, outros apaziguam; alguns constroem pontes, outros levantam muros. Entre eles, há um que parece conter a fórmula do limite: o “per”.
Sempre tive uma curiosidade quase obsessiva pelo fenômeno da linguagem humana. Desde a adolescência me fascina a etimologia — esse mistério das origens sonoras do pensamento. Quis entender como as palavras nascem, se adaptam, criam raízes e, como árvores de mesma seiva, se multiplicam em troncos diferentes. Fascina-me ver como um único prefixo pode gerar mundos inteiros: mudar o destino de uma ideia, alterar o gesto de um povo, aproximar ou afastar consciências. É na genealogia das palavras que enxergo a cartografia do espírito humano.
Em química, o “per” representa o grau máximo. É o ponto em que uma molécula, saturada de átomos, beira o colapso. O instante entre plenitude e ruína. E há nisso uma exata metáfora da vida humana — porque também nós desabamos quando ultrapassamos o ponto de equilíbrio.
O “per” é o prefixo do excesso e da perfeição. “Perfeito” vem do latim perfectus: o que foi feito até o fim. Nada lhe falta — e, por isso mesmo, nada mais pode crescer. Toda perfeição é um começo que se encerra.
Mas há outros termos que revelam o duplo rosto do “per”: perdão, perigo, perverso, perene, perseverar. Em todos, um traço de risco. O “per” toca o extremo — o ponto em que o humano se transcende ou se destrói.
Perdoar, por exemplo, é amar no limite. É o amor que suporta mais do que a própria estrutura parecia permitir. O “per” é o território da entrega, o gesto de quem dá tudo e, por isso, se transforma.
A perfeição, afinal, é sempre breve. É o instante em que algo está inteiro, antes de começar a se desfazer.
Mas o mundo não se sustenta apenas com intensidades. Toda forma precisa de vínculo para não se esfarelar. E é aí que surge o segundo prefixo — o “co”.
O “co” vem do latim cum: estar com. Está em companheiro, comunidade, confiança, compreender, construir. Cada uma dessas palavras descreve um modo de partilhar o mundo.
Enquanto o “per” nos eleva, o “co” nos enraíza. O primeiro busca o ápice; o segundo, o encontro. O “per” é vertical; o “co”, horizontal.
Companheiro é aquele com quem se reparte o pão; compreender é tomar junto o sentido; construir é erguer com.
O “co” é o prefixo civilizatório — o cimento das relações, a ética da coexistência. Nenhuma fé, ciência ou arte nasce isolada. Tudo é cooperação. Até o silêncio, quando compartilhado, se torna linguagem.
O “co” é a lembrança de que viver é um verbo plural. Que nada floresce na solidão, e que toda grandeza é comunhão.
Mas há quedas, rupturas, regressos. A vida pede não apenas união, mas reconstrução.
E aí entra o terceiro prefixo — o “re”.
O “re” é o prefixo do retorno e da esperança. Vem do latim iterum: outra vez. Está em renascer, recordar, recomeçar, resistir, reconciliar. Cada palavra com “re” traz a promessa de que nada está perdido para sempre.
Recordar é trazer de volta ao coração. Recomeçar é devolver ao tempo uma nova chance. Resistir é manter-se de pé quando tudo em volta cede.
O “re” é o prefixo do humano que recusa a ruína como destino.
Reconstruir, reconciliar, repensar: três verbos que definem civilizações inteiras. Depois das guerras, das falências, dos desenganos, é sempre o “re” que resta — o que refaz, o que insiste, o que renova.
Mas há um movimento ainda mais profundo: o “in”.
O “in” vem do latim intra: dentro. Está em inspiração, intuição, início, inteiro, intensidade, interior.
Enquanto o “per” é o gesto do máximo, o “in” é o gesto do mergulho. É o prefixo da consciência e da introspecção.
Inspirar é deixar entrar o ar que cria. Intuir é perceber sem precisar provar. Integrar é reunir o disperso. O “in” é o espaço interior da verdade, onde o mundo se aquieta.
Esses quatro prefixos — “per”, “co”, “re” e “in” — desenham a gramática da condição humana.
Buscamos o máximo (“per”), precisamos do outro (“co”), refazemos o que se quebra (“re”), e mergulhamos dentro de nós (“in”).
Tudo o que é vivo obedece a esse ciclo.
E talvez seja essa a perfeição possível: não a ausência de falhas, mas a harmonia entre o que se expande, o que se une, o que se refaz e o que se recolhe.
A vida, afinal, é uma conjugação de prefixos — uma forma de linguagem que nos explica, mesmo quando as palavras faltam.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.