OPINIÃO

A Justiça é feminina, mas o Direito ainda é dos homens - Por Thaís Cremasco

Entre a toga e o corpo: como o Direito ainda trata o feminino como exceção e a linguagem revela o machismo institucional que molda a Justiça brasileira

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Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, é representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça.
A Justiça é feminina, mas o Direito ainda é dos homens - Por Thaís Cremasco
Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao Supremo Tribunal Federal. Luiz Silveira/STF

A notícia de que o Supremo Tribunal Federal passou a usar a palavra “relatora” quando o processo está sob responsabilidade de uma ministra pode parecer um detalhe. Mas, no Direito — e na vida — os detalhes linguísticos revelam estruturas inteiras.

Por séculos, a Justiça foi tratada no feminino, mas praticada no masculino. A Justiça — com sua venda, sua balança e sua espada — é representada como mulher, mas quem sempre teve o poder de decidir, falar e sentenciar foram os homens. Essa dissonância não é simbólica: é estrutural.

A linguagem jurídica é um espelho do poder. “Relator”, “ministro”, “procurador”, “juiz” — e até expressões como “homem médio” — revelam um campo que, ao se dizer neutro, apenas mascara sua face patriarcal. Quando uma mulher assume a posição de relatora e o sistema insiste em chamá-la de relator, o que se afirma é a exclusão histórica do feminino do lugar da autoridade. Não é sobre gramática; é sobre poder.

A ausência de flexão de gênero na linguagem do Direito sempre foi tratada como irrelevante. Mas ela materializa uma das faces mais sutis da violência institucional — aquela que se disfarça de formalidade e repete a desigualdade dentro das próprias instituições. Essa violência se manifesta quando mulheres são interrompidas em sustentações orais, quando suas decisões são mais questionadas, quando suas falas são tratadas como exceções em um espaço que ainda as estranha.

A neutralidade do Direito nunca existiu. É uma ficção conveniente, construída para preservar a aparência de imparcialidade de um sistema feito por e para homens. Quantas mulheres têm sua palavra descredibilizada em depoimentos? Quantas são julgadas não pelo crime ou pelo direito, mas por seus comportamentos, roupas ou afetos? A venda da deusa Têmis nunca foi neutra: ela foi moldada por quem sempre julgou.

Quando Cármen Lúcia é chamada de relatora, o gesto é pequeno, mas simbólico. É o reconhecimento de que a mulher não é mais apenas a imagem da Justiça — é também quem a faz.

Mas não basta mudar palavras se a estrutura continua a mesma. Não adianta criar protocolos, leis e campanhas de equidade se o próprio sistema de Justiça reproduz, de forma institucional, as desigualdades que diz combater. Há um abismo entre o discurso da igualdade e a prática cotidiana de um Judiciário que segue hierarquizado, racializado e masculinizado. A linguagem muda, mas o poder resiste.

Ao adotar a flexão de gênero, o STF não apenas corrige uma palavra: dá um passo, ainda tímido, para corrigir uma estrutura. Porque o patriarcado também mora na gramática — e nas sentenças, nas promoções, nas pautas e nos silêncios. E toda mudança começa quando nomeamos o que o poder quis manter invisível.

A Justiça pode até ser feminina na forma. Mas o Direito ainda é, em essência, um homem que resiste a dividir a palavra, a narrativa e a história.

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