Indiferença

O mesmo cinismo, agora em São Paulo

Em um país traumatizado por tantas perdas recentes, ouvir um governador brincar com a falsificação de bebidas enquanto famílias enterram seus mortos é insensibilidade; é desprezo

Escrito en Opinião el
Maria Luiza Falcão Silva é economista com mestrado em Economia pela University of Wisconsin-Madison e doutorado em Economia pela Heriot Watt - Escócia. É professora aposentada da Universidade de Brasília e foi assessora da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Seus trabalhos são voltados para as áreas de Economia Internacional, Economia Monetária e Financeira e Desenvolvimento Econômico . É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed).
O mesmo cinismo, agora em São Paulo
João Valério / Governo do Estado SP

O Brasil voltou a ouvir o riso dos poderosos diante da dor do povo. Em plena tragédia de intoxicação por metanol — um veneno usado na adulteração de bebidas e que já provocou mortes e internações — o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, achou espaço para ironizar. Disse, entre risos, que “só vai se preocupar quando começarem a falsificar Coca-Cola”. A frase, que poderia parecer um deslize, é na verdade a expressão de uma cultura política que perdeu o senso de humanidade.

A fala lembra os piores momentos da pandemia, quando o então presidente Jair Bolsonaro — mentor político de Tarcísio — zombava das vítimas que morriam asfixiadas, imitava gente sem ar e dizia que “não era coveiro”. A ironia diante do sofrimento virou marca registrada de uma geração de líderes que se acostumou a confundir frieza com coragem e crueldade com sinceridade. O saldo foi mais de 712 mil mortes.

Em um país traumatizado por tantas perdas recentes, ouvir um governador brincar com a falsificação de bebidas enquanto famílias enterram seus mortos é insensibilidade; é desprezo. E o desprezo, quando parte do Estado, é uma forma de violência.

O Brasil que sofre e o poder que ri

Enquanto médicos e agentes de saúde lutam para salvar vidas, o chefe do maior estado da federação faz piada. O episódio expõe o abismo que separa quem governa de quem sofre as consequências das tragédias. É o mesmo abismo que se viu nas filas de oxigênio em Manaus, nas valas comuns de São Paulo e nas longas esperas por vacina.

Não há nada de casual no tom do governador. A zombaria é parte de um projeto político que despreza a empatia, ridiculariza a dor alheia e normaliza o colapso social como se fosse destino. A “nova direita” brasileira construiu seu poder sobre essa retórica cruel — o riso diante da miséria, a piada diante da morte, o deboche como linguagem de governo.

A omissão que mata

A atitude do governador é desprezível também porque revela total negligência administrativa. Em vez de instruir a população sobre os riscos do metanol — um produto químico letal que, quando ingerido, pode causar cegueira, convulsões e morte em poucas horas — Tarcísio preferiu fazer troça.

Num momento em que a informação salva vidas, o silêncio e o sarcasmo matam. Era papel do governador alertar: que o metanol não tem cheiro, não tem gosto, que os sintomas iniciais são visão turva, náusea, confusão mental. Bastaria uma coletiva responsável para orientar o povo a procurar assistência médica imediata. Mas, como na pandemia, preferiu-se a piada ao cuidado, o deboche à prevenção. Já são mais de 225 registros de pessoas com suspeita de contaminação. Uma população em pânico.

O silêncio sobre o crime organizado

Mais grave ainda foi o conteúdo da entrevista concedida por Tarcísio após o escândalo. Em vez de esclarecer o avanço das investigações sobre as redes criminosas envolvidas na falsificação das bebidas, o governador se apressou em isentar o PCC de qualquer ligação. Por quê? Esquisito.

Essa pressa em “tirar o PCC da conversa” desperta suspeitas legítimas. O surto de envenenamento não é um caso isolado: envolve rotas clandestinas, contrabando e distribuição em larga escala — operações que exigem logística e controle territorial. A insistência em negar qualquer conexão parece menos uma defesa da verdade e mais uma tentativa de evitar o risco político de uma intervenção federal em São Paulo, algo que o bolsonarismo paulista teme como a peste.

Tarcísio, que vive às sombras de um ex-presidente que flertou com o caos institucional, parece repetir a cartilha: proteger o “território político” mesmo que isso custe transparência, justiça e vidas humanas.

Governar é respeitar o sofrimento humano

O Brasil precisa, mais do que nunca, de líderes capazes de sentir. Que compreendam que governar é cuidar — não debochar. Que saúde pública não é “não é minha praia”, como disse Tarcísio, mas sim o primeiro dever de um governante.

Quando a insensibilidade se torna método e o cálculo político substitui o dever público, a política se degrada em espetáculo. E o poder passa a rir daquilo que deveria socorrer.

Um projeto de poder disfarçado de piada

A ironia, neste caso, não é apenas desrespeito — é sintoma. Tarcísio representa a face “gestora” de um projeto que se alimenta do descaso e do autoritarismo. Admira abertamente figuras como Netanyahu e Donald Trump, ambos símbolos da intolerância travestida de liderança forte. E é esse mesmo cidadão — frio, calculista e insensível — que se apresenta como pretenso candidato à Presidência da República, com a complacência silenciosa da mídia tradicional brasileira, sempre disposta a suavizar o inaceitável quando vem da direita.

Mas o povo não esquece. As palavras ficam. O riso diante da tragédia não é só falta de empatia. É confissão de caráter. E caráter, no fim, é o que separa governantes de cúmplices.

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