Bares Brasil afora VI – (sem metanol) Goiânia etc. – Por Mouzar Benedito
Ao final do texto, uma breve historinha de vodca falsificada; não com metanol
Medo de bares? Que absurdo! Era de se esperar, nestes tempos em que vale tudo que dê lucro, ausência de ética numa grande parcela da população, golpes de todos os tipos (além dos políticos, os via celulares, invasão de contas bancárias, jogos lotéricos pela internet, “influencers” mutreteiros, religiosos trambiqueiros etc. etc. etc.), bandidagem no alto empresariado, medo de usar telefone celular na rua, falsificações de coisas ingeridas por nós com risco de matar ou ferrar a saúde da gente. Comida e bebida.
Bem... Não é de hoje que existem falsificadores de bebidas. Há algumas décadas, quando era mais raro o consumo das importadas, especialmente o uísque, dizia-se que a Escócia era o terceiro maior produtor de uísque escocês. O primeiro era o Paraguai e o segundo era o Brasil. Não era com metanol. Eu não consumia o dito-cujo, nem tinha dinheiro pra isso, mas ouvia histórias de gente que frequentava os chamados inferninhos (casa noturna misto de danceteria com – às vezes – a presença de prostitutas de luxo). Ressaca das mais brabas! Neles, serviam quase sempre uísque falsificado, todo mundo sabia, mas esse pessoal ia lá... e consumia o maldito. Só que a falsificação não era com metanol, diziam que se usava iodo para dar a cor que queriam. Ressaca braba, mas não morte nem cegueira.
Essa do metanol também não é tão novidade: quando começou a produção de carros a álcool e do álcool como combustível, houve casos assim. O metanol é muito mais barato até do que o álcool de cana comum, vendido em supermercados, e os canalhas aproveitam. Em Santo Amaro da Purificação (Bahia), um deles usou o tal álcool para falsificar cachaça e o resultado foram 21 mortes! Mas não foi só lá e nem só cachaça: em São Paulo, tive amigos internados depois de beber caipirinha de vodca em bares meio sofisticados.
E era de se esperar, também, por um motivo que conto no final deste texto. Por enquanto, vamos lembrar de historinhas passadas em bares que frequentei sem medo em vários lugares do Brasil. Desta vez, em duas cidades paulistas e duas goianas, Eldorado (SP), Posse (GO), Águas da Prata (SP) e Goiânia (GO). Relembro que nesta série incluo causos já citados em crônicas publicadas por aí.
Eldorado – Xiririca da Serra (SP)
Em São Paulo, quando alguém queria falar de um fim de mundo, lugar distante e inacessível, dizia “lá em Xiririca da Serra”, a maior parte das pessoas pensando que esse é um lugar imaginário. Mas Xiririca da Serra existe, fica no Alto Vale do Ribeira, só que mudou de nome: passou a chamar-se Eldorado Paulista.
A cidade – terra de Francisca Júlia, grande poeta parnasiana – fica na entrada de uma região que tem uma das maiores quantidades de grutas do Brasil. Entre elas, a Caverna do Diabo, que virou ponto turístico uma época e fez algumas pessoas da cidade pensarem que Eldorado passaria a receber muita gente, muitos turistas. Um morador chegou a abrir um hotel grande para os padrões da região, esperando a chegada desses turistas. Mas eles passavam reto, iam à Caverna do Diabo e voltavam sem parar em Eldorado. A cidade continuou parada, sem “progresso” e por isso mesmo um lugar que eu gostava muito. Tem uma mancha terrível na sua história: Bolsonaro... Mas isso não é culpa da cidade.
Numa das vezes que fui lá, pesquisando cultura popular, em 1976, vi um monte de gente entrando no antigo prédio de um cinema que não funcionava mais e parei num boteco ao lado. Um rapaz com aparência muito nervosa tomava uma cachaça e perguntei a ele o que estava acontecendo. Era um concurso de declamação de poesia que começaria dali a pouco. Ele era professor de uma escola rural e iria participar, declamando um poema de Francisca Júlia. Estava nervoso por isso. Muito nervoso. Gostei. Paguei mais uma cachaça pra ele e tomei algumas também e conversamos até um pouco antes de chegar a vez dele declamar, já bem mais calmo mas um pouco chumbado pelo álcool. Não sei como foi sua declamação. Continuei bebendo no bar e pensando que maravilha de lugar aquele, que tinha concurso de declamação de poesia!
Posse (GO)
No norte de Goiás, Posse só começou a ter ligação rodoviária na época da fundação de Brasília. Conheci lá uma família de mineiros que foi para a região muito antes. A cidade não tinha nem correio, a única comunicação com o resto do Brasil era por tropas que chegavam à cidade a cada seis meses, mais ou menos, levando algumas coisas que não se produzia lá: ferramentas, sal, alguns remédios, material de costura (agulha e botões), armas e munição, tintas e um ou outro tecido fino. Praticamente tudo que se consumia em Posse era produzido lá mesmo. A comida: arroz, feijão, milho (fubá), carne (de criação ou de caça), farinha de mandioca, abóbora... Tecidos: algodão colhido e tecido lá mesmo.
Quando se mudaram para lá, como acontece em muitos lugares, teve quem não gostasse. Um dia o Dunduca (nome infantil, mas homem bravo) entrou num bar e um cara com uma garrafa de pinga na mão esquerda o xingou e ameaçou pegar um revólver na cinta, com a mão direita. Um perfeito duelo de filmes de bangue-bangue... O Dunduca foi mais rápido, sacou seu revólver e atirou, acertando a garrafa de cachaça do sujeito. Ficou com a fama de ser bom no gatilho, mas os irmãos diziam que na verdade ele queria acertar o peito do desafiador, errou e acertou na garrafa.
A primeira vez que fui lá foi em 1976, se não me engano. Bom, o assunto é bar. Não tinha nenhum especial lá. Em quase uma semana que passamos na cidade, bebíamos em qualquer um.
O tempo passou... e em 1995, fui morar em Brasília. Voltei a Posse algumas vezes. A cidade tinha mudado muito, era movimentada, tinha um novo centro com uma rua que era também estrada movimentada e barulhenta. A área antiga da cidade parecia abandonada, mato em volta, casas com ar de decadente E bares? Também não tinham melhorado, nem ali nem na parte nova, mas tinha um que eu gostava por causa do nome: “Tição Copo Sujo”. E para ir a ele, passávamos por um armazém que tinha escrito na parede o que vendia lá: louças, ferragens, gêneros alimentícios, material de higiene e outras coisas, e escrito em letras maiores: “TUDO EM GERAL”.
Águas da Prata (SP)
Morando em São João da Boa Vista (trabalhava em várias cidades da região), ia regularmente a Águas da Prata, estância hidromineral com uma das melhores águas que existem. Era uma cidade minúscula no início dos anos 1970, e só movimentada nos fins de semana. Eu ia só nos dias de semana, sem movimento, e meu bar preferido era um... boliche! Ia jogar? Não! O boliche e o bar ficavam no térreo e num andar em cima tinha um ambiente escuro com biombos dando privacidade para cada mesa. O garçom só subia lá se fosse chamado por uma campainha que tinha nas mesas. E quando eu ia, só a minha mesa estava ocupada, por mim e uma moça. Pedíamos a primeira bebida e só chamávamos o garçom, no mínimo meia hora depois, com tempo para namorar sem que incomodassem a gente.
Goiânia (GO)
Pra paquerar moças lindas, como são muitas goianas, uma época eu ia ao Chafariz, bar frequentado por universitárias. Mas uma vez tinha uma opção diferente, um boteco bem pé sujo.
Vinha do Nordeste e ia à cidade de Goiás, para entrevistar Cora Coralina. Um amigo, o Mário foi comigo. Nós nos hospedamos numa espelunca no bairro de Campinas, ao lado do bar do Sissi. Levantávamos por volta das dez da manhã, tomávamos um café e ele ia pro Bar do Sissi, onde a Maria (nome fictício), garçonete sobrinha do dono já estava e virou paquera do meu amigo.
O Mário começava a beber cerveja e dançar com ela de manhã e assim ia até de madrugada. Almoçava e jantava no Bar do Sissi. Durante o resto do tempo, bebia e dançava com a Maria, quando o rádio do bar tocava alguma música legal. E como estava animado, achava todas as músicas ótimas. Eu ficava um pouco no bar, mas saía bastante, voltava, e ele estava lá, bebendo e dançando. À noite, às vezes ia ao Chafariz, sozinho.
Lá pelo quarto ou quinto dia comecei a insistir em continuar a viagem. Ele pedia mais um dia... Até que dei um ultimato:
— Se você quiser, fique aí. Eu sigo pra Goiás amanhã. Já vi até os horários de ônibus.
Falei isso e fui passear. Voltei às cinco da tarde, já pensando em continuar a viagem sozinho mesmo. Os dois dançavam animados. Ela estava com um vestido tomara-que-caia. Os ombros ficavam expostos, e o Mário quase babava neles, dançando.
Quase babava... e vomitou. Isso mesmo. Tinha comido alguma coisa e bebido bastante. Não deu tempo pra nada. Vomitou feio no ombro da Maria. Vi o vômito descendo pelo peito e pelas costas e entrando debaixo do vestido, e fiquei alegre, pensando que agora ela lhe daria um fora e ele não teria mais o que fazer ali. Eu teria companhia para continuar a viagem.
A Maria pegou um pano de limpar pratos, ao lado da pia, limpou os ombros, as costas e os seios sujos de vômitos, rindo, e continuaram a dançar.
— Ô mulher sem-vergonha — falei baixinho, e fui ao Chafariz.
Ah, uma coisa desses dias lá: uma tarde, bebemos um litro de gim e um de cachaça. Fui dormir bêbado e devia acordar com uma baita ressaca, mas acordei tontinho de tudo. Aí descobri esse efeito do gim. A sensação de bêbado não passava. Pensei: “Passei pro outro lado”. Esta expressão eu usei antes para um conhecido que um dia bebeu muito chá de cogumelo e no outro dia, olhou no espelho e viu duas pessoas, ele repetido. E continuou assim. Não voltou mais. “Passou pro outro lado”.
No fim do segundo dia, eu estava quase desesperado achando que nunca mais ficaria sóbrio, e com um gosto ruim, de laranja podre. Outro efeito do gim. Do fim da sensação de bêbado ao início da ressaca dá isso.
Semanas depois encontrei um amigo em São Paulo e ele falou: “Pô... Te encontrei em Goiânia e você não me reconheceu”. “Foi o gim...”, respondi e ele não entendeu. E nos dias seguintes encontrei mais uns três ou quatro amigos dizendo que me encontraram em Goiânia e eu não reconheci. Não podia imaginar que tanta gente de São Paulo não só estava naquele bairro de Goiânia como passou em frente ao bar do Sissi.
Mais uma lembrança: o Sissi costumava beber com a gente. Uma vez, anos depois, voltamos lá e o chamamos pra beber uma cachaça. Ele não quis: “O médico me proibiu. Agora só posso tomar bebida fina”. Nós nos espantamos, perguntamos que bebida fina era a que mandava pra dentro agora, e ele contou que era vinho. “A gente paga uma garrafa e bebemos com você”, falamos. E ele abriu a “bebida fina”: uma garrafa de vinho Chapinha.
Agora uma historinha de vodca falsificada
Junho/julho de 2020, tempos de pandemia. A gente saía de casa só por extrema necessidade, principalmente os velhos, que ainda eram xingados por ir às ruas, mesmo usando máscaras.
Supermercados e sacolões passaram a fazer entregas em casa. Num desses estabelecimentos, eu mandava uma lista de compras, por e-mail, e entregavam à tarde, cobrando uma taxa. Pagava com cartão de débito.
Aproveitava então para fazer estoque de algumas coisas de consumo regular. Numa compra pedi uns litros de vodca Smirnoff. Abri a primeira, e ela tinha gosto! Gosto ruim! Vodca legítima não tem gosto. Antes, eu bebia em bares e num deles, na Vila Madalena, a vodca tinha gosto também. Chamei o garçom, ele comprovou, trouxe uma garrafa fechada, abriu na nossa frente... e tinha gosto ruim. Ele disse que os outros não reclamavam, mas mostrei que bebiam caipirinha; limão e o açúcar disfarçavam. Enfim, não bebi. Sugeri que escolhesse melhor seus fornecedores, pois era lógico que aquela vodca era falsificada. Com certeza não era com metanol, pois não tive notícia de cegueira ou morte pelos consumidores. Mas pedi outra bebida.
Desta vez, vodca comprada por litro, liguei para o serviço de atendimento ao consumidor, e fui atendido. Mandaram buscar em casa, para analisar, e entreguei a garrafa aberta e as fechadas.
Dias depois recebi um e-mail me agradecendo e informando que “uma vez tendo constatado que uma mostra analisada não era genuína, a Diageo não faz ressarcimento da amostra analisada”. E nem devolveram as outras, fechadas, para eu tentar trocar onde comprei, por vodca de outra marca. Protestei por não me devolverem, mas não teve jeito.
Com as notícias atuais, de mortes e outras desgraças causadas pelo metanol em várias bebidas, procurei na minha caixa de e-mails e, por sorte, não tinha apagado a mensagem que mandei pra eles em 15 de julho de 2020. Transcrevo aqui. Só apago o nome do lugar em que comprei porque me atenderam devidamente, comprovaram minha compra conferindo nos arquivos do estabelecimento, me mandaram outras, mesmo sem eu devolver as falsificadas (pedi que fossem por outra marca), e informaram que trocariam de abastecedor. Aí vai a mensagem que mandei, protestando:
"Senhores,
Recebi hoje o laudo 4209 informando que a vodca Smirnoff que comprei no XXX, da rua XXX, Vila Madalena, São Paulo, é falsificada. E sendo assim, não receberei substituição do produto que entreguei para análise.
Quis contribuir para que vocês aprimorem suas atividades e, se for o caso, combatam a falsificação, mas, como sempre, o prejuízo fica sempre com o consumidor. Então eu é que tenho que ir atrás do falsificador do produto de vocês? Ou vou exigir no supermercado ou outro estabelecimento que, antes que eu compre, me comprovem que o produto que vendem é genuíno?
Acho um desrespeito enorme. Uma autêntica forma de agir de certos empresários. Lamentável. O que posso fazer? (...) Só posso deixar de consumir a Smirnoff e recomendar aos amigos que façam o mesmo que eu. E somos muitos...
Mouzar Benedito”.
PS: Não acredito que a empresa tenha a ver com a falsificação, nem na época nem agora. Mas achei muito estranho que em vez de me agradecer tenham me “punido” não me substituindo a bebida falsificada. Era o mínimo que deviam fazer. Nem sei se foram atrás dos falsificadores.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.