Análise

Sustentando o olhar sobre Gaza – Por Cesar Castanha

“Com Hasan em Gaza” revela um cinema que não pretende a restauração do que foi perdido, mas sustentar um olhar engajado, tão vulnerável quanto o lugar que filma

Escrito en Opinião el
Do encanto com os créditos de abertura de "Alice no País das Maravilhas", visto religiosamente sempre que exibido nas tardes de sábado pelo SBT, veio a paixão pelo cinema como experiência estética, transformadora e expressão de uma ideia, uma história ou do próprio experimento. Por amar o cinema para além dos padrões de qualidade impostos a ele pela mídia, por outras instituições e até por uma crítica datada, veio o meu amor por conversar sobre cinema, aderi-lo, defendê-lo, apropriar-me dele. O Milos Morpha é uma conversa sobre cinema. Aqui, o texto nunca é certo e definitivo. O cinema não é uma fórmula para que cada cineasta se aproxime da solução mais correta, é um conjunto de experiências artísticas que já dura mais de 100 anos, é dessa forma que criticamente percebemos e experimentamos o cinema no Milos Morpha.
Sustentando o olhar sobre Gaza – Por Cesar Castanha
Cena do filme. Divulgação

O cinema de arquivo de Kamal Aljafari tem métodos inconstantes. Em “Um verão incomum”, o diretor usa registros da câmera de segurança da casa de seu pai através de alguns meses, subvertendo o dispositivo de vigilância e segurança como um que captura modos de habitação. Em A fidai film, ele apresenta imagens recuperadas do Centro de Pesquisa Palestino, em Beirute, depois de elas terem sido saqueadas pelo exército israelense nos anos 1980. Nos dois casos, os arquivos revelam a vida na Palestina independentemente da colonização por Israel. Esses arquivos audiovisuais se apresentam como insurrecionistas por proclamarem, no presente e no passado, uma Palestina livre.

Esses filmes também se apresentam como contraponto a um projeto arqueológico colonial de Israel, que investiga o próprio solo da Palestina histórica em busca de provas geológicas que apresentem o atual Estado de Israel como continuidade de uma habitação “original” do território. Uma tentativa de justificar, sob um viés supremacista, o projeto colonial. Para isso, é também necessário sequestrar o arquivo palestino. E é contra esse sequestro, realizando uma operação arqueológica inversa, que age o cinema de Kamal Aljafari.

Em “Com Hasan em Gaza”, exibido no XVI Janela Internacional de Cinema do Recife, Aljafari retoma esse conceito de cinema como arqueologia (ou contra-arqueologia, considerando a sua necessidade de se contrapor a uma arqueologia outra que conquista validação política e científica no serviço que presta ao poder estabelecido) ao apresentar um arquivo audiovisual tomado por uma distância temporal e afetiva. Aljafari reencontra fitas MiniDV gravadas em 2001, quando visitava Gaza guiado por Hasan, e as transforma na matéria-prima de seu novo filme. Essa distância entre o tempo da gravação e o tempo da reaparição é a expressão de um método de Aljafari, que lê o arquivo audiovisual como ruína, uma que revela lembrança e apagamento, território comum a vivos e fantasmas. O gesto do cineasta aqui, como também em A fidai film, instaura um olhar que, no lugar de tentar literalizar o passado como uma verdade unívoca, investiga a maneira como o tempo se inscreve nessas imagens do passado.

Aqui, as imagens reencontradas para o filme não respondem a uma busca por completude, mas identificam fraturas e desvios do propósito original da viagem, que é o de reencontrar um amigo que o cineasta conheceu quando foi preso aos 17 anos. Assim, o filme se constrói através de planos que ocorrem no limiar entre o registro e o desaparecimento, entre o gesto de filmar e o de lembrar. O filme também se prolonga em cenas externas ao seu discurso reivindicativo dos direitos dos palestinos e do reconhecimento de seu sofrimento diante da calculada precarização de suas vidas, com diversos momentos, por exemplo, em que diferentes crianças exigem serem filmadas, posam para a câmera fílmica com sorrisos estáticos, puxam crianças menores e as forçam a também posar para a câmera. Essa multiplicação de imagens, desviantes da autoridade colonial israelense, mas também da “missão” estabelecida do filme, insiste na presença palestina, continuadamente ameaçada de apagamento.

A montagem do filme torna manifesta essa ameaça ao articular transições, cortes e uma lógica temporal e política interna a esse arquivo (e não só projetada por sua recuperação anos depois), o que ocorre quando Aljafari, da janela do primeiro andar da casa de Hasan, filma um ataque israelense noturno. As mãos que seguram a câmera, e consequentemente a imagem, tremem a cada som de estrondo causado pelo bombardeio, enquanto Hasan ordena que Aljafari siga filmando, garantindo que as bombas não conseguem alcançar tão longe quanto aquela casa. A câmera se volta para trás e filma Hasan nas escadas da casa, uma figura fantasmática, quase indistinta, no escuro. Quando a câmera volta para a janela, ela coloca em questão o que foi perdido, o que deixou de filmar ou o que desapareceu, daquele horizonte no quadro, no tempo desse movimento. Quando a montagem nos leva, depois, diretamente ao amanhecer, no mesmo enquadramento, perguntamo-nos o que não vimos cair na escuridão.

Diante das lacunas das imagens e da impossibilidade de restituição plena daquele espaço e daquelas pessoas, o espectador é convocado a reconhecer o limite do próprio olhar, que é também o limite da forma fílmica, e se engajar com o intervalo como território ético, dado por um filme que se recusa a preencher os vazios deixados pela destruição, reconhecendo que há experiências (de perda, de violência, de ausência) que não podem ser totalmente representadas, mas podem ser acolhidas pela câmera e pelo olhar que compartilhamos com ela. “Com Hasan em Gaza” revela, assim, um cinema que não pretende a restauração do que foi perdido, mas sustentar (eventualmente de forma literal) um olhar engajado, participativo, tão vulnerável quanto o lugar que filma.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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