Vozes na estrada: o país imaginado de “Dry Leaf” – Por Cesar Castanha
O filme é sobre o esforço de permanecer em contato com o mundo, ainda que esse contato seja imaginativo e o destitua de sua nitidez
Em 2017, o diretor georgiano Alexander Koberidze veio à cidade do Recife apresentar no “Janela Internacional de Cinema do Recife” um filme chamado Let the Summer Never Come Again. Com mais de três horas de duração, filmado com recursos mínimos, mas explorando o máximo das possibilidades formais e estéticas desses recursos, o filme causou o seu impacto, vencendo o prêmio de melhor filme pelo júri de críticos da Abraccine naquele ano. Desta vez, o cinema de Koberidze volta ao “Janela” com Dry Leaf, um filme de estrada sobre um pai que procura sua filha, fotógrafa esportiva, através de pequenos campos de futebol no interior da Geórgia.
Se Let the Summer Never Come Again já revelava um cineasta interessado em brincar com a dinâmica da narrativa junto à experiência sensorial, Dry Leaf segue esse jogo, criando um conjunto de personagens ficcionais a serem observados pelo mesmo olhar quase etnográfico que Koberidze dirige aos interiores do seu país, assemelhando-se a filmes como “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (dir. Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, 2009), na ficcionalização de uma imagem semidocumental, e “No decurso do tempo” (dir. Wim Wenders, 1976), pela maneira como formaliza esse filme de viagens. O que Koberidze observa etnograficamente, ele traduz como fabulação, como se cada campo de futebol tomado pela grama alta, cada estrada poeirenta, carregasse um sintoma sensível de um país em transformação.
Há, em Dry Leaf, um gesto que alcança uma dimensão histórico-poética: o filme parece olhar para a Geórgia como quem tenta decifrar, nos rastros do presente, o que foi deixado por um passado recente. As imagens em baixa resolução, a trilha sonora tomada por dublagens e a contemplação produzida sobre aqueles espaços criam uma paisagem de suspensão, em que o tempo histórico se mistura ao tempo da memória e em que cada plano funciona como tentativa de recriar como forma audiovisual algo que está em processo de gradual desaparecimento.
Ainda que essas transformações da paisagem georgiana sejam observadas pelo filme, ele não produz sobre elas um desejo nostálgico. Pelo contrário, em muitos momentos Dry Leaf revela um desejo de se engajar com essas mudanças pelo olhar, pela caminhada e pela espera. Koberidze parece interessado em reconstituir um modo de perceber o mundo que nasce da convivência e da escuta. As conversas breves, os encontros fortuitos no caminho (muitos deles com figuras ausentes da imagem, como fantasmas que são percebidos apenas pelo personagem atento e dedicado em seu amor pela estrada), tudo isso compõe um mosaico de afetos que devolve humanidade às imagens técnicas, pixelizadas e artificiais que o dispositivo do filme articula.
Em Dry Leaf, é a voz quem assume o papel de mediador entre o visível e o invisível, entre o que o filme mostra na imagem e o que apenas se intui. A câmera de Koberidze parece ser guiada pelas duas vozes viajantes, uma delas pertencendo a um corpo que se faz visível, do pai que busca pela filha, e a outra a um companheiro de viagem que permanece oculto da imagem. É a essas vozes que o filme confia a possibilidade de recompor o mundo formalmente distorcido que ele atravessa. Essa ênfase na voz dos personagens dá origem a uma poética em que cada diálogo, cada enunciado, é um exercício de imaginação sobre a Geórgia filmada.
Ao fim, Dry Leaf parece construir uma escuta da viagem. A Geórgia surge como um vestígio enunciado pela passagem dos personagens. Koberidze filma esses espaços com a ternura de quem reconhece neles um repositório de experiências de vínculo físico e afetivo. Entre seus encontros, o filme faz do deslocamento uma forma de pensamento a partir dessas duas viagens sobrepostas, os rastros de alguém que procura e de alguém que é procurada (posições que o filme confunde nos seus momentos finais). Nesse horizonte, Dry Leaf é um filme sobre o esforço de permanecer em contato com o mundo, ainda que esse contato seja imaginativo e o destitua de sua nitidez.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.