Cultura é um direito. O desafio é fazê-lo chegar a todos - Por Marcela Canéro
O direito à cultura depende do direito à informação. Garantir o acesso exige comunicar para além das estruturas formais do Estado
Hoje, 5 de novembro é o Dia Nacional da Cultura, uma data que deve ser mais do que comemorativa. É um convite à reflexão sobre o que, de fato, garante o direito à cultura. Num país em que a produção artística é abundante, mas o acesso e a participação ainda são desiguais, pensar a cultura como direito exige ir além da celebração. É preciso compreender o que torna esse direito efetivo, vivido e partilhado, o que faz com que ele saia do papel e chegue ao seu destinatário final: a população.
Mais do que uma pauta de classe artística ou de um setor nichado, o viver cultural é uma experiência coletiva que traduz a própria ideia de cidadania. Refletir sobre o Dia Nacional da Cultura é, portanto, refletir sobre o Brasil e sobre as condições que permitem ou impedem que cada pessoa crie, participe e usufrua da vida cultural de sua comunidade.
A cultura é reconhecida como um direito humano essencial em tratados e declarações internacionais. Está prevista no Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e reafirmada pela Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO (2001), que define a cultura como o “conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social, e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (Artigo 1º).
No Brasil, os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 consagram a cultura como direito de todos e dever do Estado, estabelecendo que cabe ao poder público garantir o acesso e a valorização das manifestações culturais em toda a sua diversidade. Esses dispositivos jurídicos expressam mais do que obrigações legais: representam compromissos éticos com a dignidade e a pluralidade. Eles também evidenciam que o direito à cultura só se realiza plenamente quando articulado a outro direito fundamental, o direito à informação.
O Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) reconhecem a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio. No Brasil, esse princípio é reafirmado no Artigo 5º da Constituição Federal, que assegura a liberdade de expressão e o acesso à informação como bases da vida democrática.O direito à informação é, portanto, parte inseparável do direito à cultura. Sem visibilidade, comunicação, acesso e compartilhamento, o direito à cultura não se realiza como experiência pública e cidadã.
O Brasil viveu, a partir de 2003, um novo momento no desenvolvimento das políticas públicas culturais. Sob a liderança de Gilberto Gil, primeiro artista a ocupar o cargo de Ministro da Cultura, o país passou a compreender a cultura não como privilégio, mas como direito. Em seu discurso de posse, Gil afirmou: “Não cabe ao Estado fazer cultura, mas criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade. Porque o acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável.”
Sob sua gestão, a política pública cultural passou a ser compreendida como campo de direitos e de cidadania, e não apenas como setor administrativo do entretenimento. Essa mudança de perspectiva estabeleceu as bases para uma política cultural de Estado, centrada na diversidade, na descentralização e na valorização da produção simbólica de comunidades e territórios.
A extinção do Ministério da Cultura em 2019 representou um dos maiores retrocessos institucionais da história recente. Ao ser reduzida a uma secretaria, a cultura perdeu autonomia orçamentária e capacidade de formulação, fragilizando políticas estruturantes e interrompendo programas de fomento que garantiam o acesso e a diversidade cultural no país.
A recriação do Ministério da Cultura em 2023 marcou um novo ciclo de reconstrução. Sob a liderança de Margareth Menezes, o MinC retomou seu papel histórico de articulador de políticas públicas culturais, restabelecendo vínculos com estados, municípios e agentes culturais. Mais do que um gesto administrativo, essa retomada simbolizou o reconhecimento do Estado de que a cultura é um direito. O novo MinC vem fortalecendo políticas estruturantes, como a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), ampliando o alcance das ações e reafirmando o compromisso com a diversidade e a cidadania cultural.
Duas décadas depois, um novo desafio se impõe. Além de consolidar políticas públicas culturais estruturantes, é preciso criar novas estratégias de difusão que levem o que já é produzido e fomentado até o seu destino final: o povo. Garantir o direito à cultura, hoje, exige também garantir o direito de saber, de se reconhecer e de participar da vida cultural.
Marilena Chauí propõe compreender a cultura a partir de três dimensões: simbólica, econômica e cidadã. Na simbólica, ela cria sentidos e identidades; na econômica, movimenta cadeias produtivas e gera trabalho; na cidadã, expressa pertencimento e participação. A comunicação é o fio que costura essas dimensões. Ela não é apenas um meio técnico de divulgação, mas um processo social e simbólico que define quem fala, quem é ouvido e o que se torna visível. A comunicação é, em si mesma, uma forma de cultura.
As práticas comunicacionais moldam o imaginário social e, por isso, têm efeitos diretos na efetivação dos direitos culturais. A ausência de comunicação entre o poder público e a sociedade é uma ausência de tradução simbólica. Quando o cidadão não conhece as políticas existentes, não se reconhece nelas ou não compreende seu valor, o direito à cultura é interrompido. Mas quando o Estado escuta, reconhece e compartilha as narrativas populares, a política cultural se torna viva e participativa.
Nesse contexto, as redes digitais têm papel central. Elas ampliam o alcance, mas também trazem novos desafios. São espaços de encontro e conflito, onde se constroem pertencimentos e se disputam narrativas. O crescimento do acesso à internet no Brasil (de 32 milhões para 141 milhões de usuários entre 2005 e 2024) revela que a maior parte da população está conectada. Permanecer apenas na dimensão local, sem presença digital, significa correr o risco da invisibilidade.
Néstor García Canclini observou: “La comunidad territorial necesita interactuar con los entornos digitales. Me detengo en una de las dimensiones nodales de las actuales guerras culturales: las disputas por la apropiación. (...) No es sustituir un territorio por nada, sino entender el estiramiento que se da en la realidad de la relación comunitaria y que nos exige plantearnos qué está pasando con lo digital, que nos permite comunicarnos, restablecer, continuar y reactivar.” (Conferencia de apertura presentada en el Seminario Internacional Cultura Viva Comunitaria: Una Escuela Latinoamericana de Políticas Culturales, realizada el 8 de abril de 2025 en el Centro Cultural de España en México.)
O Rio de Janeiro é um exemplo de como o desafio da participação cultural necessita ampliar o alcance da informação sobre o que já existe. A pesquisa Cultura nas Capitais – Rio de Janeiro (JLeiva, 2024) revela um cenário de grande potencial de interesse por atividades culturais, mas de participação ainda concentrada em determinadas regiões. Embora 32% dos moradores tenham ido ao teatro e 40% participado de festas populares no último ano, a pesquisa aponta que outros 30% dos que não foram ao teatro e 28% dos que não participaram de atividades de dança têm alto interesse em fazê-lo, o que indica que a participação poderia dobrar se houvesse mais informação e acesso, por exemplo. O estudo também revela uma desigualdade territorial marcante: as regiões com maior infraestrutura cultural (Zona Sul, Centro e Barra da Tijuca) concentram a maioria das atividades e do público participante, embora representem apenas 37% da população, enquanto as Zonas Norte e Oeste, onde vivem 64% dos cariocas, registram os menores índices de frequência. Esses dados reforçam que o direito à cultura depende diretamente do direito à informação: sem visibilidade e difusão, a cultura permanece restrita.
A cidade possui, ao mesmo tempo, uma das redes mais densas de iniciativas culturais do país: mais de 450 Pontos e Pontões de Cultura certificados na capital, atuando em áreas que vão da cultura popular e da música à educação e à arte de rua, com atividades majoritariamente gratuitas. Essas experiências mostram que a cultura já acontece, o que falta é fazer com que essa informação chegue a toda a população, como expressão de cidadania e de direito. Se essas atividades fossem mais divulgadas, conhecidas, talvez os dados apresentados pela pesquisa anterior fossem diferentes e mais promissores nas regiões mais populosas.
Esses Pontos de Cultura são, em essência, redes multiplicadoras: espaços de criação, circulação e diálogo que conectam comunidades, saberes e linguagens. São territórios de comunicação viva, onde a cultura se espalha por meio da escuta, da cooperação e da troca.Garantir o direito à cultura é também garantir o direito de saber. Saber o que existe, o que é possível, o que está ao alcance de todos. Informação de qualidade é o que transforma políticas em práticas e territórios em redes de pertencimento. É o que multiplica o fazer artístico social.
As políticas públicas culturais chegam de fato à população quando são tecidas como redes de relação. Elas se tornam eficazes quando construídas com as pessoas, e não apenas para elas. O Estado precisa reconhecer o fazer cultural como parte da vida social e não como algo externo a ela. A comunicação é a ponte que transforma o técnico em humano, o programa em prática, a política em espaço de reconhecimento.
Campanhas, anúncios ou publicações formais não dão conta da complexidade e da diversidade dos territórios culturais. Não basta apenas colocar a régua institucional nos créditos de um filme, por exemplo. Só entende isso quem é do meio. É preciso que esse filme chegue às escolas públicas e que o ingresso não custe R$ 60, valor inviável para uma família que vive com um salário mínimo. É preciso que as pessoas possam acessar o que é produzido com recursos públicos, que saibam onde, quando e como participar.
Ao mesmo tempo, há uma rede viva pulsando fora dos centros de decisão, que são: coletivos, fazedores de cultura, comunicadores populares, influenciadores de território, rádios comunitárias, mídias independentes e educadores que reinventam, na prática, os modos de comunicar. Eles constroem narrativas locais, compartilham histórias invisibilizadas e criam pontes simbólicas onde o Estado ainda não chega. São redes multiplicadoras, que conectam o direito à informação ao direito à cultura e demonstram que comunicar é também fazer cultura.
Pensar a cultura como direito é afirmar a garantia do pleno acesso à cultura como compromisso ético e político. Isso significa inserir as ações culturais de fomento no cotidiano, nas escolas, nos CAPSs, nos centros de reabilitação social, nas praças e nas ruas. Esses espaços também são lugares de encontro e de fruição. É neles que o direito à cultura se concretiza, aproximando o Estado do seu destinatário final, o povo.
Garantir o pleno acesso à cultura é também fortalecer a democracia cultural. Essa democracia não se resume ao direito de consumir bens, mas ao direito de criar, participar e decidir sobre os processos culturais de uma sociedade. O direito à informação, quando entendido como parte da democracia cultural, é o que permite a participação consciente e o exercício pleno da cidadania. Informar é compartilhar conhecimento, tornar as políticas compreensíveis e acessíveis, abrir espaço para o diálogo e a escuta. Democracia cultural e direito à informação caminham juntos.
O direito à cultura e o direito à informação, quando integrados, se tornam prática e exercício de cidadania. Falamos não apenas do direito de criar, produzir, compartilhar e fruir os produtos culturais, mas também dos direitos de preservar, exercer e expressar os diversos modos de vida que compõem o país. Juntos, formam a base da cidadania cultural: aquela que se mede não só por dados, mas pela capacidade de imaginar, de criar e de se reconhecer. É a garantia da vida plena, do desenvolvimento social e de um bem-viver que só a cultura é capaz de promover.
*Marcela Canéro é jornalista formada pela FACHA, com especialização em Gestão Estratégica de Marketing. Atua principalmente em reportagens voltadas para políticas culturais, movimentos sociais, literatura, mulheres, educação e políticas públicas