Dia da Cultura: os terreiros e a invenção contínua dos Brasis - Por Vitor Friary
Sem políticas públicas que assegurem a existência dos terreiros, a cultura nacional continuará construída sobre o apagamento de quem a criou
O Dia da Cultura, celebrado em 5 de novembro, deveria servir como um espelho diante do qual todos nós nos reconhecemos por inteiro. E, ao se olhar, deveria enxergar com muita clareza que grande parte do que chamamos de cultura nacional nasce, resiste e é recriada e transformada nos terreiros de matrizes africanas. Nesses espaços, memória e futuro são inseparáveis, unindo arte, cultura e ecologia. Os terreiros não apenas preservam traços de um passado interrompido pela violência colonial, eles sobretudo reinventam, diariamente, uma forma brasileira de existir no mundo.
Os terreiros são instituições completas: produzem conhecimento, cuidam da vida comunitária, transmitem valores éticos e sustentam tecnologias sociais ancestrais sofisticadas. Como demonstra Stefania Capone (2010), eles não se limitam a reproduzir tradições africanas; são espaços de criação, onde diferentes temporalidades se encontram para produzir identidades vivas. Ali, a cultura é processo e não produto finalizado. Cultura é aquilo que se cozinha, se canta, se planta, se cura.
O corpo no terreiro aprende a dançar para lembrar; e lembrar é uma ação pedagógica. Existe potência nos corpos criativos dos terreiros, em especial quando performam as histórias do passado e os mitos dos orixás, tornando-se arquivos de memória coletiva. Basta acompanhar um xirê, que é a cerimônia pública de danças louvando os orixás, para perceber que, nos terreiros, a história insiste em não virar somente o que está no museu.
Há ainda o que Pierre Verger documentou: o vínculo entre espiritualidade, cuidado e natureza. A saúde nos terreiros é compreendida como harmonia: de corpo, território e espírito. Parte essencial de nossa cultura de bem estar está ali, embora ainda pouco visível às políticas públicas de saúde, educação e cultura. O país insiste em dividir o que os terreiros sempre integraram: arte, ética, cura, comida, comunidade e identidade.
Se é verdade que os terreiros são patrimônio cultural, então essa afirmação deve ter consequências. Não há política de preservação que faça sentido sem reconhecer a territorialidade do sagrado. Sem quintal, não há folha. Sem casa, não há ritual. E sem terreiro não há cultura brasileira que se sustente. É preciso dizer isso com todas as letras: proteger a cultura afro-brasileira exige garantir as condições materiais para que os terreiros continuem a existir onde sempre existiram. O Estado gosta de tombar expressões, mas ainda se esquece de proteger as pessoas e os lugares que fazem essas expressões respirarem.
Nesse debate, a contribuição de Célio Turino é decisiva. Ele defende que a cultura nasce do que as comunidades fazem e sabem, e não do que o poder público decide prestigiar. O Estado deve apoiar sem submeter, reconhecer sem domesticar. A experiência dos Pontos de Cultura revelou que quando o governo reconhece um terreiro como agente legítimo de cultura, algo se transforma no entorno: autoridades passam a olhar com mais respeito, a comunidade se fortalece, a autoestima coletiva se expande, jovens permanecem no território e a violência diminui. O reconhecimento simbólico, nesse caso, salva vidas concretas.
Mas o modelo que Turino propõe não é o que mede cultura pela quantidade de eventos ou pelo alcance de público em plateias fixas. A régua deve ser outra: o impacto na vida das pessoas. Quantas trajetórias encontram sentido? Quantas relações comunitárias se fortalecem? Que futuro se cultiva ali? Quando se desloca o foco do espetáculo para o processo cotidiano, os terreiros deixam de ser vistos como espaços periféricos e passam a ocupar o centro do que mantém o Brasil junto, vivo e pulsante.
Falar de cultura no Brasil, portanto, é falar de racismo também. Não há como celebrar patrimônio e ignorar que terreiros seguem sendo atacados, depredados e silenciados. A cada intolerância, não é apenas uma casa religiosa que se fere: é um pilar da sociedade brasileira sendo atacado. É o próprio Brasil que sangra culturalmente quando um terreiro é ameaçado de destruição. E o combate a essa violência precisa fazer parte de qualquer política cultural que se pretenda.
Por isso, o Dia da Cultura não deve ser apenas uma data comemorativa, mas um compromisso com o futuro. Um país que se orgulha de sua diversidade precisa garantir que essa diversidade continue sendo produzida nos territórios que as concebem. Os terreiros não pedem privilégio. Pedem aquilo que Turino chama de parceria: respeito à autonomia, proteção do território, reconhecimento das redes culturais que os sustentam e continuidade das práticas que formam cidadãos, artistas, curadores do mundo e produtores de espiritualidade.
É urgente que o Estado compreenda que o Brasil mais potente está acontecendo no cotidiano dessas comunidades. E que os terreiros, longe de representarem um passado exótico, são laboratórios de futuro. Ali se forjam saberes que apontam caminhos para um país mais justo, mais plural e mais saudável, literalmente em todos os sentidos.
No Dia da Cultura, o convite é simples e profundo: olhar para quem nos ensinou a celebrar a vida apesar da dor. Honrar os povos que transformaram a separação de suas famílias originárias em território de resistência, e transformaram ruptura em criação. Precisamos assumir que sem os terreiros perderíamos nossas bases éticas, estéticas e espirituais. E reconhecer, finalmente, que cuidar desses lugares é cuidar do Brasil que queremos deixar como herança.
A cultura brasileira continua sendo inventada a cada toque dos atabaques, a cada oferenda que agradecemos, a cada gesto de ensino silencioso que molda o bom caráter e pertencimento. Que o Dia da Cultura sirva para reafirmar o óbvio: sem políticas públicas que assegurem a existência dos terreiros, a cultura nacional continuará construída sobre o apagamento de quem a criou.
Fontes
Capone, S. (2010). A busca da África no Brasil: Tradição e poder no Candomblé. Pallas.
IPHAN. (2003). Política de Patrimônio Imaterial do IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Turino, C. (2019). Por todos os caminhos: Pontos de Cultura na América Latina. Revista V!RUS / UNESP.
Verger, P. (1999). Orixás: Deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Corrupio.