Opinião

“Levanta e anda”: O milagre na ciência brasileira - Por Rodrigo Perez

Tatiana desenvolveu o medicamento polilaminina, a partir de uma proteína encontrada na placenta humana. Pacientes tetraplégicos recuperaram movimentos logo depois da 1ª injeção

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Nasceu no Rio de Janeiro em 30/01/1986, é historiador, tendo se formado na educação pública das primeiras letras ao doutorado. Vivendo em Salvador desde 2017, onde atua como professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, o autor pesquisa a história do pensamento político brasileiro e os usos do passado no texto historiográfico e nas narrativas políticas, temas que foram explorados nos livros “As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro”, publicado pela editora Multifoco em 2013, e “Conversas sobre o Brasil: ensaios de síntese histórica”, pela editora autografia em 2017.
“Levanta e anda”: O milagre na ciência brasileira - Por Rodrigo Perez
Tatiana Sampaio, pesquisadora da UFRJ. Arquivo pessoal

Rua Gomes Freire, quase esquina com a Avenida Mem de Sá. Lapa, bairro tradicional do centro do Rio de Janeiro. Pela multidão aglomerada e pelo som do batuque, é fácil encontrar o “Botequim Vaca Atolada”, reconhecido como ponto de encontro dos boêmios cariocas. Entre as frequentadoras mais assíduas está Tatiana Sampaio, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a cientista responsável pela descoberta que promete revolucionar a medicina moderna.

Mãe de três filhos (Raquel, Ivo e Anita, de 28, 25 e 21 anos), Tatiana divide sua rotina entre a família, o trabalho de pesquisa à frente do Laboratório de Matriz Extracelular e a docência no curso de Medicina da UFRJ, além da roda de samba no Vaca Atolada, ou “Vaca”, para os íntimos. Professora concursada da UFRJ desde 1995, Tatiana gosta da cidade, da música, do encontro, da festa. Perfil bem diferente daquele, caricato e algo real, do cientista isolado no laboratório, distante das deliciosas mundanidades. O que para muitos seria distração, para Tatiana é combustível.

Tatiana vem chamando a atenção do país desde que vieram a público os promissores resultados de suas pesquisas sobre o tratamento de lesões medulares. Junto com sua equipe, a professora desenvolveu um medicamento chamado polilaminina, a partir de uma proteína encontrada na placenta humana. Pacientes tetraplégicos recuperaram movimentos logo depois da primeira injeção. O caso mais notório é o de Bruno Drumond, homem de 30 anos que sofreu um acidente de carro em abril de 2018. Quase completamente paralisado do pescoço para baixo, Bruno participou como voluntário da fase experimental da pesquisa realizada no laboratório chefiado por Tatiana, recebendo o medicamento 24 horas depois do acidente. Os resultados foram impressionantes: Bruno recuperou os movimentos e hoje seria capaz de ir caminhando para o “Vaca Atolada”. Poderia até sambar, caso tenha o molejo necessário, mas aí já não seria problema da alçada da professora Tatiana.

A pesquisa foi desenvolvida ao longo de 27 anos, contando com financiamento público por meio de órgãos de fomento como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atualmente, a pesquisa é financiada pela iniciativa privada, através de uma empresa farmacêutica chamada Cristália. Por força da legislação de controle fiscal imposta no contexto do golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma em 2016, a ciência brasileira está sofrendo uma crise crônica de financiamento, o que compromete seriamente o desenvolvimento nacional. Para que boas ideias se transformem em inovações científicas e tecnológicas, é necessária uma robusta política de financiamento público. Geralmente, a iniciativa privada se interessa pelos produtos já amadurecidos, capazes de gerar lucro imediato. Somente o Estado nacional é capaz de investir no momento da incerteza, do ensaio, da dúvida.

Em João 5, 1–9, é narrado o episódio em que Jesus Cristo está no Tanque de Betesda, em Jerusalém, onde encontra um homem paralítico. A crença popular dizia que as águas de Betesda eram capazes de curar os enfermos, mas o pobre do paralítico nunca conseguia se banhar, pois não havia quem o carregasse. Jesus perguntou se ele queria a cura. Obviamente, o sujeito disse que sim. Jesus, então, ordenou: “Levanta-te, toma teu leito e anda.” Imediatamente, aquele que era paralítico começou a andar. Não temos registro se sambou. Não há notícias de que tenha existido uma versão do Vaca nos tempos de Jesus. Na narrativa religiosa, o milagre acontece assim, pela vontade do Ser Todo-Poderoso. Carece de fé para acreditar. No plano das evidências, daquilo que podemos ver e verificar , milagres também são possíveis, mas através da ciência e pelas mãos dos cientistas. Porém, não acontecem de uma hora para a outra, num estalar de dedos. Precisam tempo, paciência e, principalmente, investimento. Sem investimento, não há ciência, não há milagre.

Os cientistas brasileiros são reconhecidos no mundo inteiro por sua criatividade e capacidade de improviso. Fazem muito com pouco. Gente talentosa, essa nossa. Tatiana Sampaio representa melhor que ninguém essa classe de trabalhadores capazes de operar milagres. Tatiana merece ser a primeira pessoa nascida no Brasil a ser laureada com o Prêmio Nobel de Medicina. Estamos na torcida. Se vencer, terá carnaval fora de época no Rio de Janeiro, com muito samba no Vaca Atolada. Se não vencer, quem perde é o Nobel, pois teremos samba no Vaca do mesmo jeito, e com a presença ilustre de Tatiana Sampaio.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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