“Eu jamais entraria para um clube que me aceitasse como sócio” (Marx, Grouxo)
O documentário “A conspiração consumista” no Netflix mostra com detalhes a crise final do sistema capitalista. Como bem sabemos nós, os professores das Universidades Federais brasileiras, famosos pela sistemática doutrinação marxista em sala de aula, diante das grandes transformações sociais e tecnológicas na Europa do século XIX, Marx previu que a crescente fetichização das mercadorias (que privilegia o valor abstrato em detrimento do seu valor de uso) e a evolução tecnológica que produziria uma explosão na mais-valia e seu colapso, como uma estrela que explode e é consumida pela própria gravidade e vira um buraco negro, ou seja, não é possível extrair mais-valor de máquinas e o sistema se dissolve no ar. O documentário mostra que as necessidades de gerar trabalho e renda através da produção e a acumulação extrema de capital das chamadas big techs estão transformando todos os recursos naturais finitos do planeta em uma imensa montanha de lixo não reciclável de componentes eletrônicos, embalagens, roupas e quaisquer outras bugigangas da Amazon e da Shopee, que aliadas ao lixo residual da queima de carbono e dos excrementos fétidos e inférteis de cafeína e hormônios despejados na água potável dos esgotos, levam filósofos neomarxistas como o japonês Kohei Saito ou Slavoj Zizek, ou mesmo filósofos de correntes antagônicas com Paul Preciado a afirmarem em suas obras que a humanidade chegou o ponto sem retorno.
O sistema Qualis e a teoria marxista
Pois a produção acadêmica e científica no Brasil está acompanhando o sistema capitalista em seu colapso e sua crise final.
Na década de 1990, o Brasil enfrentava um desafio significativo para melhorar a qualidade dos programas de pós-graduação e a produção científica. A falta de critérios uniformes para avaliar a relevância das publicações científicas dificultava a comparação entre diferentes programas e áreas de conhecimento.
Em resposta a esses desafios, a CAPES iniciou a concepção do Sistema Qualis. O objetivo era criar uma ferramenta que permitisse a classificação das revistas científicas onde os pesquisadores brasileiros publicavam seus trabalhos. Essa classificação seria baseada em critérios como a qualidade editorial, a relevância científica, e o impacto das publicações
A implementação do Sistema Qualis envolveu a colaboração de diversos especialistas e instituições. Foram realizadas consultas e análises detalhadas para definir os parâmetros que seriam utilizados na classificação das revistas. Além disso, houve a criação de comitês específicos para cada área do conhecimento, garantindo que as particularidades de cada campo científico fossem consideradas.
Os critérios utilizados pelo Sistema Qualis para avaliar as revistas científicas são diversos e abrangem várias dimensões da produção acadêmica.
Para relacionar o Sistema Qualis com o conceito de capital de Marx, é essencial compreender que Marx define capital como valor que se valoriza, ou seja, o valor que busca constantemente se expandir através do processo de produção. No contexto do Sistema Qualis, podemos encontrar paralelos interessantes com essa definição.
A qualidade editorial das revistas científicas pode ser vista como um reflexo da acumulação de capital intelectual. Assim como o capital financeiro busca maximizar retornos, a qualidade editorial maximiza o valor das publicações ao garantir rigor no processo de revisão por pares, a qualificação dos membros do conselho editorial e a periodicidade da publicação. Da mesma forma que a acumulação de capital financeiro busca aumentar a produtividade e eficiência, a alta qualidade editorial busca aumentar a credibilidade e a relevância das revistas científicas.
Marx enfatiza que o capital não é apenas uma relação econômica, mas também uma relação social. A relevância científica das publicações, que considera a importância das pesquisas para o avanço do conhecimento, pode ser interpretada como a contribuição do capital intelectual para o valor social. Em tese, as pesquisas originais e metodologicamente robustas contribuem para o desenvolvimento das áreas de conhecimento e para práticas profissionais, refletindo a forma como o capital intelectual se manifesta como valor social.
O impacto das publicações científicas é medido por indicadores como o fator de impacto e o índice H, que refletem a frequência com que as pesquisas são referenciadas e utilizadas por outros pesquisadores. Este critério é análogo ao conceito de expansão do capital de Marx, onde o capital busca se ampliar. A ampla citação e utilização das pesquisas demonstram a capacidade do capital intelectual de se multiplicar e influenciar diversas áreas, refletindo a natureza expansiva do capital.
A análise da distribuição e visibilidade das revistas científicas, incluindo sua presença em bases de dados internacionais e o alcance global das publicações, pode ser comparada à circulação do capital. Marx argumenta que a circulação do capital é essencial para sua valorização. Da mesma forma, a distribuição ampla e a visibilidade das revistas científicas são cruciais para a valorização do capital intelectual, garantindo que as pesquisas alcançam uma audiência global e impactam múltiplas áreas do conhecimento.
A capacidade das revistas científicas de introduzir novas ideias, teorias e metodologias representa o capital intelectual em sua forma mais pura. A inovação e o pioneirismo promovem o avanço e a transformação das áreas de conhecimento, alinhando-se ao conceito marxista de capital como um agente de mudança e desenvolvimento. O capital intelectual não apenas se expande, mas também evolui e se adapta, promovendo progresso contínuo.
O Sistema Qualis, com seus critérios de avaliação das revistas científicas, pode ser relacionado ao conceito de capital de Marx de diversas maneiras. A qualidade editorial, relevância científica, impacto das publicações, distribuição e visibilidade, e inovação e pioneirismo refletem a acumulação, expansão, circulação e evolução do capital intelectual. Dessa forma, o Sistema Qualis não apenas garante a classificação justa das revistas científicas, mas também contribui para a valorização contínua do capital intelectual no Brasil, alinhando-se às dinâmicas de capital descritas por Marx.
Tudo isso acima, a partir do título “O sistema Qualis e a teoria marxista”foi escrito pela Inteligência Artificial CoPilot, que apareceu em meu Word 365 em uma das atualizações compulsórias da Microsoft. Eu fiz essa pergunta quando tive a ideia de escrever esse texto. Pedi que a Inteligência Artificial fizesse uma análise do sistema Qualis pela teoria de Marx. O que apareceu foi uma teoria marxista feita por Bill Gates, o maior acumulador de capital do mundo.
Durante os governos FHC, Lula 1 e 2 e Dilma 1 a produção científica brasileira nas Universidades Federais o sistema Qualis de produção científica no Brasil foi o que provavelmente forneceu subsídios para que o Copilot fizesse sua análise marxista e fosse possível encaixar o rótulo de “doutrinadores” aos professores federais. Contudo, o imenso capital empregado na expansão do ensino superior e na pesquisa, como todas as revoluções no capitalismo, enfrentaram crises e saídas das crises sem enfrentar suas reais contradições inerentes ao sistema.
Em primeiro lugar, as universidades concentram sua ação no tripé ensino, pesquisa e extensão, e a revolução do sistema de ensino não acompanhou a do Qualis, pelo contrário. Os primeiros períodos desse sistema foram nos governos FHC onde o sucateamento das Universidades Federais atingiu o nível máximo, e durante muito tempo as verbas dos Programas de Pós-Graduação garantiram o papel higiênico, a conta de luz e o pequeno incremento tecnológico das salas de aula. Paradoxalmente, no últimos 30 anos nunca formamos tantos professores na história, que não possuem formação pedagógica e não são absorvidos pelas escassas vagas nas Federais, o que torna os concursos concorridos, excludentes e cujas grades de avaliação curricular privilegiam a produção de artigos. A maioria dos docentes que ingressam na Universidade atualmente possuem muitas publicações indexadas e valorizadas no Qualis e quase nenhuma experiência docente ou mesmo alguma formação pedagógica (como licenciatura). E assim acontece a formação de novos pesquisadores na graduação, com docentes que emendaram bolsa de IC, mestrado e doutorado e que nunca exerceram suas profissões.
Em segundo lugar, o grande fluxo de financiamento da pesquisa pautado pela produtividade seguido pela sua abrupta redução após o ajuste fiscal de Dilma e o famigerado “teto de gastos” seguido de 4 anos de Paulo Guedes geraram respostas adaptativas dos pesquisadores e PPPGs no sentido de aumentar a produtividade, em detrimento da qualidade, o que gerou a “Shopinização” da pesquisa brasileira. Nos dias de hoje, na maioria dos PPGs, para obtenção do título de mestre ou doutor não é mais suficiente defender uma tese ou dissertação. É preciso submeter pelo menos um artigo a uma revista Qualis “no espectro A”. Antigamente a publicação era recomendada como recompensa a trabalhos relevantes, inovadores e de grande qualidade. Hoje, muitos docentes usam como subterfúgio a submissão de artigos dos trabalhos de conclusão de curso nas graduações, quando estes já não são feitos no formato das revistas, o que já acontece com teses e dissertações. Há alguns anos participei de uma banca de qualificação de doutorado cujo projeto era composto de quatro artigos, sendo que DOIS já haviam sido publicados, ou seja, o fluxo do capital social do ritual da banca de qualificação foi totalmente subsumido pelo valor de fetiche do capitalismo, como uma festa de casamento católico que custa 500.000 reais sendo que os noivos moram juntos há anos e se divorciam 2 meses depois.
Outro exemplo da “shoppinização” da produção acadêmica é o imenso congestionamento das revistas científicas. Trago aqui um caso pessoal, mas que é experimentado por vários colegas. Mantenho o frescor do ódio do texto postado na rede social Facebook:
“O sistema de produção científica no Brasil representa o caos do mundo acadêmico e o total desrespeito ao trabalho intelectual sério e comprometido".
Uma revista de Qualis A em 2023 abriu chamada para artigos sobre um tema específico.
Submeti meu texto e passei dois anos esperando o parecer.
Então uma conhecida postou no Instagram comemorando a publicação do texto dela no dossiê. Sim, hoje temos que comemorar nossa produção festejar mesmo como se ganhássemos na loteria. Imaginem um barbeiro comemorando um corte de cabelo ou um garçom comemorando um Chopp servido.
Então abri o login da revista e lá estava o texto aguardando avaliação. Não é novidade esperar dois ou três anos para ter o parecer de um artigo (que pode ser recusado) ou seis meses para a revista avisar que faltou a carta ao editor (documento inútil) ou alguma regra ridícula de submissão. Na era da inteligência artificial temos que escrever carta de submissão e preencher formulários com resumos em três idiomas e títulos.
Enviei mail para a revista questionando que simplesmente meu artigo tinha sido ignorado para o dossiê ( torcendo pela resposta, que em muitos casos não vem porque as revistas estão sucateadas e sem dinheiro para pagar bolsistas) . Muitas estão fechando ou retendo o recebimento de artigos porque os PPGs obrigam seus mestrandos e doutorandos a submeter artigos de suas dissertações, não interessa o que elas contenham.
E hoje recebi mensagem do editor dizendo que o artigo foi aprovado com um link para a revisão do texto, que não tinha nenhum parecer ou sugestão de alteração, só burocracia.
E o artigo será publicado.
Tipo um pedido de desculpas do Ifood pelo lanche errado.
Sem nenhuma satisfação.
É claro que o colapso desse sistema não será imediato nem sentido por todos, assim como um paciente terminal com um grande tumor no cérebro pode possuir coração, rins e fígado preservados e certamente o apocalipse que está chegando na Europa hoje já chegou há 500 anos para os povos originários das américas (alô Krenak!). Os grandes laboratórios e grupos de pesquisa que se alinharam rapidamente a lógica produtivista que vivem alheios a periferia, são como moradores de condomínios fechados com segurança e drones totalmente isolados e alheios às imensas comunidades de favelados e precarizados, tendo acesso a elas de forma discreta pelos seus funcionários da limpeza ou entregadores.
Então voltamos ao velho Marx, cujo parceiro era o burguês erudito e engajado Engels, e não Bill Gates. A categoria mais qualificada de trabalhadores brasileiros está submetida a um regime de trabalho que, segundo Ricardo Antunes, retorna aos piores tempos da revolução industrial: precarização, mecanização e alienação. Eu diria “shoppinização”.
Esse texto é dedicado a todos meus colegas professores e professoras de Universidades Federais que lutam pela sobrevivência e pela existência. Eu sei que muitos vão ficar chateados comigo. Mas não é pessoal. O capital é uma gigantesca máquina simbólica impessoal e que encarna em nossos corpos sob a forma da exploração do trabalho. É contra isso que luto.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum