Apesar dos indícios consistentes de fraude e até mesmo do testemunho de um deputado petista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva saudou publicamente a "reeleição" de Daniel Noboa, representante da direita equatoriana. A interrogação que se impõe é: por quê?
No último domingo, 13 de abril, o povo equatoriano retornou às urnas, em segundo turno, para escolher entre Daniel Noboa e a candidata de esquerda, Luisa González. Ao final do escrutínio, o Conselho Nacional Eleitoral declarou a vitória de Noboa com aproximadamente 56% dos votos. González, por sua vez, obteve praticamente a mesma votação do primeiro turno, tanto em números absolutos quanto em percentuais, fato que causou estranheza, dada a ampliação de sua base de apoio no segundo turno. Tal resultado, em flagrante dissociação com as principais pesquisas de opinião, que apontavam leve vantagem para González, desafia o senso comum estatístico.
Somam-se a isso relatos de integrantes da Polícia Nacional e das Forças Armadas sobre operações de "plantio" de registros de votação em favor de Noboa, além da decretação de estado de exceção em Quito e outras sete províncias às vésperas do pleito. Também houve denúncias de alteração na equipe de segurança de González poucos dias antes da votação. Atas supostamente fraudadas foram apresentadas pela coalizão Revolução Cidadã, que contesta o resultado, requerendo recontagem e auditoria dos votos.
Até mesmo o deputado federal João Daniel (PT-SE), que participou como observador internacional, manifestou-se publicamente sobre as irregularidades, sem que isso tenha modificado a postura do Itamaraty, que prontamente reconheceu o resultado, sem sequer exigir a apresentação formal das atas, como o próprio Lula exigira na eleição venezuelana de 2024.
Em julho de 2024, Celso Amorim, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, esteve em Washington para reuniões com autoridades norte-americanas, incluindo Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA. O tema central foi justamente o pleito venezuelano. A viagem visava, sob o pretexto de mediação regional, alinhar posicionamentos entre Brasil e Estados Unidos.
Não é irrelevante que Noboa se alinhe ideologicamente a seu fiador, Donald Trump, em políticas conservadoras e adote uma retórica de segurança pública de viés autoritário. Historicamente, os EUA manifestam interesse direto em sustentar governos simpáticos à sua política externa, sobretudo em razão da necessidade de conter a influência da China e marginalizar regimes de esquerda na região.
Por meio de agências como a USAID e a NED (National Endowment for Democracy), os EUA financiam ONGs, meios de comunicação, campanhas eleitorais e think tanks com o fito de moldar o debate público e fomentar oposições internas aos governos progressistas. Está consolidado um novo padrão de tomada de poder: os neogolpes. Trata-se de destituições presidenciais travestidas de legalidade, conduzidas por parlamentos, cortes judiciais, "observadores internacionais" e amparadas por elites conservadoras e conglomerados midiáticos. O impeachment de Dilma Rousseff é paradigmático.
A ascensão de lideranças como Javier Milei (Argentina), Nayib Bukele (El Salvador) e agora Daniel Noboa (Equador) evidencia a consolidação de um campo ideológico regional que combina conservadorismo moral, autoritarismo securitário e negacionismo ambiental, muitas vezes amparado por setores religiosos de base neopentecostal e interesses do agronegócio.
Nessa conjuntura, os Estados Unidos intensificam sua estratégia de contenção da China na América Latina, vista como ameaça direta à hegemonia hemisférica norte-americana. A região é tratada, desde a Doutrina Monroe (1823), como "zona natural de influência" dos EUA. A presença crescente da China em setores estratégicos — infraestrutura, tecnologia, energia — tem motivado reações diplomáticas, econômicas e militares por parte de Washington.
É nesse tabuleiro que se insere a preocupação fundamental: ao legitimar seleções diplomáticas norte-americanas, o governo brasileiro arrisca sua autonomia regional, compromete a estabilidade de governos progressistas e enfraquece o projeto de integração soberana da América Latina. O Brasil, ao abdicar de sua postura tradicional de equidistância ativa, transforma-se em ator subordinado e contribui, direta ou indiretamente, para a reconfiguração conservadora do continente.
O reconhecimento apressado do resultado equatoriano não é apenas um gesto diplomático: é uma declaração de alinhamento, cujas implicações para o futuro da esquerda latino-americana e para a própria credibilidade do Brasil como líder regional ainda estão por se revelar.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum