Desde criança, Steve era apaixonado por minas. Um desejo incomum em uma sociedade que não valoriza tanto assim o trabalho manual. Quando cresce, Steve não consegue realizar seu sonho de ser um mineiro e acaba indo trabalhar em um escritório. Infeliz, rebela-se contra esse tipo de atividade enfadonha e invade a mina que observava desde a sua infância. Lá ele encontra um artefato que abre um portal e o leva para um mundo imaginário, onde o trabalho é realizado sem esforço algum. Basta apontar e os blocos aparecem edificando construções exuberantes.
Inicialmente, ao observar o mundo de Minecraft (inspirado em um jogo eletrônico de grande sucesso) podemos imaginar a utopia socialista, pois lá, o indivíduo não foi expropriado de suas terras, de modo que fosse forçado a trabalhar para os outros para sobreviver. O trabalho é, supostamente, livre. Não há patrões dando ordens, determinando o que deve ser produzido. Não há metas para atingir, cada um produz o que bem entende.
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Seria perfeito, mas é fácil quando se está sozinho. Ser livre nada tem a ver com estar só. É nesse momento que percebemos que o mito socialista se perdeu. Se não existe coletividade é difícil até mesmo de interpretar tal atividade, ainda que criativa, como trabalho. Sem a coletividade resta apenas o indivíduo idiotizado, que só pensa em si. De agora em diante, portanto, substituiremos “livre” por “autônomo” (o privilégio da servidão), porque o modelo de trabalho que vemos no mundo de Minecraft está muito distante do reconhecimento social que o trabalho possibilita.
Mas se pegarmos o jogo eletrônico como base, podemos compreender a construção naquele mundo como trabalho, já que gera lucro para a empresa. Ivan Mussa, Thiago Falcão e Daniel Marques destacam um ponto interessante quando analisam o jogo Free Fire: “[...] do que se entende pelo consumo de videogames. Esta forma, que vislumbra a capacidade de ação dos jogadores de criar bens a partir de sua perícia, envolve atores que nem sempre são profissionais no sentido estrito da palavra, sobretudo porque se relacionam com plataformas e corporações a partir do afeto que nutrem por ela. Jogadores, assim, ao mesmo tempo em que são consumidores fiéis de uma plataforma, também são trabalhadores da mesma, e seu labor é responsável pela eclosão de uma economia particular, cuidadosamente equilibrada entre as vontades das corporações, de um lado, e as vontades dos fãs, do outro”.[1]
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E para Steve, esse é o trabalho ideal. Jamie Woodcock, mostra que a cultura geek é a mais consumista das subculturas. E a indústria dos jogos está lucrando com a paixão dos fãs que “se dispõem a trabalhar por longas horas, às vezes sem remuneração, e a se submeter a termos precários de trabalho”.[2] Ou seja, é um trabalho disfarçado de entretenimento.
O mundo mágico do trabalho de Steve é ameaçado por uma feiticeira ditadora que explora seus trabalhadores (literalmente porcos) para a mineração de ouro. Ela possui um desejo voraz de destruição do “Mundo Superior”, o mundo que Steve tanto ama.
Não seria exagero comparar Malgosia, a feiticeira goblin do Nether, com a figura de Donald Trump. O cinema é marcado pela “fatalidade de reprodução não de coisas na sua realidade concreta, mas exatamente retratadas pela ideologia”.[3] Além disso, como explicam Luís Mauro Sá Martino e Ângela Cristina Salgueiro Marques, “a cultura pop trabalha com referências históricas e políticas da sociedade onde é criada, assimilando e reagindo às transformações desta, criando códigos e referências que, de certa maneira, traduzem para o tempo presente questões que sempre fizeram parte das narrativas humanas - por exemplo, a questão do bem e do mal, dilemas éticos, conflitos de valores e emoções, a busca por sentido e várias outras dimensões da experiência humana”.[4]
Trump, com suas medidas econômicas, - deportação de imigrantes, tarifaço etc. - afirma estar recuperando “o lugar da América como uma potência industrial dominante”.[5] Contudo, por muitos anos, os EUA exportaram suas fábricas para o exterior, e com maior intensidade para o leste asiático. E é sabido por todos que o setor produtivo tem uma certa dependência do trabalho de imigrantes.[6] Mas, até pouco tempo atrás, os EUA gabavam-se de ser uma nação pós-industrial que valoriza muito mais o trabalho intelectual que o manual. Nesse novo contexto cultural do trabalho, seria impossível que as minas onde Steve trabalha fossem de verdade. A única mineração possível no centro do capitalismo de plataforma é a mineração de dados…
David Morley diz que “na televisão, não existe ‘um texto inocente’ - não há programa que não seja digno de atenção séria, nenhum programa que possa alegar fornecer apenas ‘entretenimento’ em vez de mensagens sobre a sociedade”.[7]
Trabalhadores munidos dos meios de produção que pertencem ao patrão é a realidade social do Nether, o mundo governado por Malgosia. É lógico que as duas formas de trabalho metaforicamente representadas no filme - o homem office uberizado focado no setor de serviços do Mundo Superior e o trabalho do setor primário e secundário do Nether - estão para o fomento do interesse dos patrões, porém em um o patrão é explícito e no outro implícito. O fato é que, no mundo real, ambos vivem sob algum tipo de ilusão que os incentivam ao trabalho alienado. Mas a questão é como estes elementos são apresentados na mitologia entre o bem e o mal.
O bem está representado pelo trabalho empresarial autônomo. O personagem “Lixeiro” representado por Jason Momoa tem a função de nos lembrar do mundo real em meio a toda fantasia. Trata-se de um empresário falido que entra no mundo de Minecraft pela ambição de tesouros e acaba por ajudar na luta pelo trabalho autônomo. Depois da batalha junto ao grupo liderado por Steve, ele se torna um novo homem e seu empreendimento no mundo real se torna um sucesso. Foi na vitória contra o modelo de trabalho onde a figura do patrão tem um grande protagonismo - um vilão que explora a massa de trabalhadores - que o Lixeiro consegue consolidar a sua empresa. É a vitória do empreendedor de si, de uma exploração que se apoia na paixão e na ilusão de “não-trabalho”, entretenimento.
A indústria dos jogos vem sendo criticada por sua demanda que flerta com a extrema direita por seguir as orientações de Hollywood ao promover produtos com o protagonismo feminino, LGBTQI+ etc.. Os gamergaters, comunidade tóxica dos gamers, “formaram uma mobilização virtual, direcionada contra vozes alternativas, críticos e novas formas de representatividade nos jogos eletrônicos”, revela Woodcock. Em meio a isso, a extrema direita investiu nos games. Mais próximo da figura de Malgosia é Steve Bannon, um dos maiores financiadores da extrema direita no mundo. De acordo com Woodcock, Bannon “desenvolveu um profundo conhecimento da cultura de jogos pelo seu envolvimento na empresa de mineração de ouro no Word of Warcraft, Internet Gaming Entertainment (IGE). A empresa empregava trabalhadores chineses para ganhar, executando tarefas repetitivas e mecânicas, dinheiro e itens no jogo, que seriam então vendidos a jogadores mais ricos, principalmente nos Estados Unidos”.[8]
Será que a feiticeira é, em vez de Trump, Steve Bannon? Ambos usaram o virtual para minerar ouro. Prefiro pensar com Leif Furhammar e Folke Isaksson para responder essa questão, “o cinema não vive num sublime estado de inocência, sem ser afetado pelo mundo; tem também um conteúdo político, consciente ou inconsciente, escondido ou declarado”.[9]
Referências:
[1] MUSSA, I., FALCÃO, T. e MARQUES, D. A corrosão do lazer: exploração do trabalho infantil nos esports. In: XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, 27 a 30 de julho de 2021, p. 3.
[2] WOODCOCK, J. Marx no fliperama. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 153.
[3] LEBEL, J-P. Cinema e ideologia. Lisboa: Estampa, 1972, p. 25.
[4] MARTINO, L. e MARQUES, A. Política, cultura pop e entretenimento. Porto Alegre: Sulinas, 2022, p. 129.
[5] https://www.google.com/amp/s/www.infomoney.com.br/mundo/com-tarifas-trump-promete-renascimento-da-industria-nos-eua-isso-e-mesmo-possivel/amp/
[6] https://www.google.com/amp/s/noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2025/01/30/apesar-de-politica-contra-imigrantes-eua-precisam-de-mao-de-obra-estrangeira-diz-especialista.amp.htm
[7] Apud MEIMARIDIS, M. Séries de conforto. Curitiba: Appris, 2023, p. 130.
[8] WOODCOCK, p. 246-247.
[9] FURHAMMAR, L. e ISAKSSON, F. Cinema e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.6.