“Viajar para os EUA está perigoso”, escreveu Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S.Paulo um dia destes, e complementou: “Risco de detenção e deportação passa a depender do guarda da esquina”. Verdade! Trump deu esses “poderes” aos guardas que queiram extravasar seus ódios fascistas, com a desculpa de que está protegendo o povo americano contra a invasão. Viajar pra lá virou uma espécie de masoquismo.
Não é exagero o que disse o colunista. A gringolândia parece ter se tornado uma ditadurazinha bananeira como algumas que ela mesma implantou e sustentou na América Central décadas atrás.
O Brasil já passou por isso de dar poderes demais a “otoridades” inexpressivas (e não está totalmente livre até hoje, aliás, nunca foi, só que extrapolou numa época), no auge da ditadura. Quando o general Costa e Silva preparava para instituir o Ato Institucional número 5, o famigerado AI-5, que radicalizava a ditadura, uns generais passaram o texto dele para os ministros assinarem. E eles assinaram. Delfim Netto, Jarbas Passarinho (“às favas com os escrúpulos” disse este), Mário Andreazza, Hélio Beltrão e outros, sem contar o ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, que achou pouco, queria um ato institucional muito pior do que aquele que acabou com muitas liberdades e deu à polícia poderes como o de invadir residências sem motivos, prender sem motivo, torturar...
Surpresa: uma pessoa do governo se negou a assinar o tal ato. E era vice-presidente da República, o civil Pedro Aleixo. Ele não era uma flor de democrata, apoiou o golpe de 1964 e por isso foi aceito como civil para o cargo de substituto de Costa e Silva caso ele se afastasse ou morresse, e parece que não é à toa que os próprios milicos que o aceitaram como vice não aceitaram que ele tomasse posse quando Costa e Silva ficou doente e depois bateu com as dez. Parece que um resquício de civilidade lhe restou, o que era pouco para os civilizados, mas demais para os milicos.
Bom... Como foi isso de ele não aceitar? Segundo consta, Pedro Aleixo se arrepiou ao ler aquele texto que instituía um regime de terror, muito mais forte do que a ditadura que já havia. Ficaram brabos e perguntaram se ele desconfiava dos generais. A resposta foi mais ou menos esta: “Nos generais, eu confio. Desconfio é do guarda da esquina”.
Quanto à confiança nos generais, bom, isso era com ele. Mas quanto ao guarda da esquina, aí sim, tinha toda razão. Qualquer policial passou a se achar todo poderoso, e muitos pretensos candidatos a autoridade seguiram seus passos. Eu me lembro de porteiros de prédios em São Paulo que se comportavam como donos e ditadores dos prédios. Barrava gente, ameaçava moradores. E ai de quem contestasse. O Dops, órgão policial de repressão política, adulava esses ditadorezinhos, uma denúncia deles era motivo para prisão e tortura do denunciado. Então, eles faziam o que queriam e não havia lei (nem autoridade) que impedisse.
Entre muitos outros fatos, cito um exemplo de como se sentiam poderosos e gostavam de se exibir. Uma vez, amigos e eu sairíamos numa sexta-feira por volta das 11h da noite, depois de terminarem as aulas do curso noturno de Geografia, onde estudávamos, para acampar no litoral norte de São Paulo. Iríamos numa Kombi de um dos colegas. Mas precisaríamos passar na casa de um outro colega que morava numa república num apartamento da avenida São João. Estudava durante o dia e dava aulas, já era professor.
Chegamos ao tal prédio, estava fechado e com um porteiro mal encarado numa mesa nos olhando pelo vidro do prédio. Batemos, ele abriu a porta, falamos que iríamos chamar o “professor Jacó” para ir com a gente. Antes de qualquer coisa, ele falou: “Professor Jacó? Eu tô investigando se ele é mesmo professor. Desconfio dele”. Com paciência para não provocar a “otoridade”, um colega falou: “É ele mesmo”. O porteiro fez pose de poderoso e falou: “Vocês não podem entrar. Já passou de dez da noite e eu não deixo ninguém entrar depois disso. Só os moradores”.
Pedimos então que ele fosse ao apartamento (na época não tinha interfone) e chamasse o Jacó. E ele se negou: “Não posso deixar a portaria”. Tentamos argumentar e isso só servia para ele se sentir mais poderoso. O Jacó tinha que viajar com a gente. E daí? O porteiro cheio de “otoridade” não escondia a cara de prazer. Nossa primeira vontade foi de pegar o cara na marra, uns dois ou três o manterem “preso” (eu tinha vontade era de dar umas porradas nele) enquanto um de nós subia ao apartamento para chamar o Jacó.
Mas se fizéssemos isso, com certeza o cara denunciaria o Jacó ao Dops, dizendo que era “terrorista” ou qualquer coisa do tipo, e aí nosso amigo se ferraria, torturado nos porões da ditadura. Tínhamos que engolir...
Ficamos em frente ao prédio, alguns gritando pelo Jacó, que não ouvia do apartamento, quando um dos moradores, bêbado, desceu para vomitar na rua. Não conseguiu se explicar porque desceu pra vomitar na rua, em vez de usar o banheiro. Bêbado tem dessas coisas. Aí demos o recado pro Jacó descer, ele veio e saiu sob o olhar ameaçador do porteiro, que se sentia tão poderoso quanto o citado guarda da esquina, mais temerário do que os generais.
Ah... Nestes tempos atuais a gringolândia tende a algo parecido com isso. E aqui a ditadura dos tempos do AI-5 foi praticamente revivida por quatro anos de um governo que sonhava com a volta dela, e mesmo depois da sua saída não escapamos dos poderes dos guardas da esquina, os policiais que jogam de uma ponte um cidadão qualquer, sem qualquer motivo, ou matam pobres seja por sufoco no porta-malas de um carro, por “balas perdidas” que sempre acham um pobre, criança ou adulto... E se eles não têm suporte de um AI-5 nem de um Dops, têm a complacência e o estímulo de certos governadores, não é?
A gringolândia não era muito diferente disso, mas agora está cada vez mais igual... ou pior. E tende a piorar com a admiração de um monte de babacas daqui.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.